Em referência ao Agosto Lilás, mês da conscientização e enfrentamento à violência contra as mulheres, a jornalista e escritora Mirelle Costa relata diariamente, neste espaço, casos que servem de alerta a todos nós
Confira:
(O texto abaixo foi escrito por uma mulher vítima de violência doméstica, atendida na Casa da Mulher Brasileira, em Fortaleza. O texto compõe a obra “Após a Morte do Conto de Fadas, a Ressurreição”, publicada pelo Senado Federal, e organizada pela jornalista e escritora Mirelle Costa. Este texto pode conter gatilhos emocionais que podem afetar algumas pessoas).
Nasci em uma família que já não era bem estruturada. Criado pelos avós, meu pai cresceu sem pai nem mãe e trabalhava o dia todo. Eu cresci sem receber amor, só surra e castigo.
Minha mãe já nasceu em uma família de muitos filhos. Minha avó resolveu que não tinha condição de criar mais uma criança. Com um ano de idade, ela foi dada para uma amiga de sua família: dona Josefa, que era de família mais rica, mas nunca registrou a criança, o que era comum naquele tempo. Com nove anos, minha mãe foi abusada pelo companheiro de dona Josefa. Anos depois, pediu para voltar para sua mãe biológica, mas essa não pôde dar assistência suficiente.
Quando conheceu a vizinha de sua mãe, que a criou desde os catorze anos até o dia de seu casamento, essa família a registrou, deu o nome e uma história cheia de aventuras, tristeza e decepções.
Aos vinte anos, conheceu meu pai. Sofreu muito. Sou filha de uma família de quatro filhos homens. Foram muitos anos de sofrimento. Ele viveu doente por muitos anos por causa do cigarro e doenças emocionais. Resumindo, sofri “peia” de irmãos e da minha mãe, que muitas vezes estava fora de si, com tanto estresse e necessidades.
Depois de adulta, sofri muito pela falta de oportunidade, talvez por me sentir só. Desde muito jovem abandonada pelo meu pai, talvez tenha tido uma vida fácil para ser iludida e vulnerável, para me envolver com pessoas dispostas a brincar com meus sentimentos. Acho que o abandono de um pai acaba se refletindo nos relacionamentos. Parece que procuramos sempre proteção e ajuda para suprirmos a necessidade de um pai ausente. Hoje sou divorciada, tenho três filhos e uma neta que são a razão do meu viver. Vivi um casamento infeliz, com muitas lutas e tristezas.
Depois de tantos abusos e agressões, com idas e vindas, entre separação e reconciliação, só me restaram as filhas e as netas. Hoje entendo que não foi amor. Vivi uma dependência emocional. Até que ponto eu o amei demais e deixei de me amar?
Em que momento me perdi? Em que acreditava e o que sonhava para minha vida?
Queria que tudo tivesse sido diferente. Fiz tudo para ter uma família estruturada. Só queria ser amada, bem tratada e respeitada. Sonhava em construir uma família. Agora tenho uma vida humilde como trabalhadora autônoma e voltei a estudar. Gosto de assistir “doramas” porque sou iludida. Eu sei que é ficção, mas, naquele momento, fico tranquila, sem ativar nenhum gatilho.
Aprendi a gostar das músicas do “BTS”; eles retratam, transmitem ajuda para muitos que estão à beira da ansiedade, da depressão.
Amar de novo? Ainda não. Me vejo de luto, tentando renascer.
S.A
(Diante de qualquer situação de violência doméstica, ligue 180, é a Central de Atendimento à Mulher, um serviço telefônico do governo federal que oferece acolhimento, orientação e informações sobre os direitos das mulheres, além de receber denúncias de violência contra a mulher)
Mirelle Costa e Silva é jornalista, mestre em gestão de negócios e escritora. Atualmente é estrategista na área de comunicação e marketing