“Futuro do pretérito”

Ainda que não mais seja
Tuty Osório é jornalista, publicitária e escritora

Com o título “Futuro do pretérito”, eis crônica da jornalista Tuty osório.

Confira:

Domingo. Era pra lá da metade de 2020. Eixão de Brasília transformado em Rua de Lazer. O FECHAMENTO, conhecido como LOKCDOWN, era parcial. Já se podia sair, com cuidados exercidos sob mil protocolos, muitas vezes atropelando-se em decretos divulgados a cada hora, pelo Brasil afora.

Por imposição de sobrevivência, tive que largar a casa, dividindo-me entre as cidades que me ofereciam trabalho. Eu e os demais brasileiros, vivendo a meia vela, sob restrições e sem estarmos a salvo do vírus.

Nem preciso lembrar do pandemônio que se instalou com a pandemia. Certamente, ninguém esqueceu. Ninguém se recuperou. Quem cumpriu o isolamento, como pôde, ainda se sente estranho compartilhando elevadores e aviões. Naquele 28 de agosto, o estranhamento era intenso e o medo, imenso. No torpor do momento, demorei mais que o mínimo entre a arrumação das malas e o trajeto até o aeroporto.

Resultado que me atingiu pela primeira vez em 55 anos de vida: cheguei com o portão de embarque fechado, perdi o voo. Eu, e pelo tamanho da fila do reembolso no guichê da companhia aérea, muita gente.

Seguiu-se a gritaria, o desespero, os argumentos. No meu caso, assumi a culpa, conformei-me com a multa, acionei a agência de viagens para remarcar com urgência e voltei para a hospedagem para fazer as horas que me separavam do próximo embarque. Não dormi um minuto. Saí com milênios de antecedência, de madrugada.

Joguei-me na aventura que era viajar, naqueles dias. Vigilante de mim e dos outros, muito álcool nas mãos, máscara quase uma armadura, sufocando a respiração e sublinhando a agonia. Sempre ligada em quem sofria mais que eu, fui percorrendo as travessias, entre aeroportos, carros, hotéis, espaços de atividade profissional.

Hoje olho para trás e me consolo vendo que consegui. Não digo que venci, porque todos perdemos. Escapei da COVID grave, veio a vacina, escapei de todas, até agora. Muitas vezes penso que se me contassem, antes, o que estava por vir, eu acharia que não conseguiria. Na palestra, ouvida pelo Youtube, com cosmovisão diversa da que é mais conhecida, esse tempo verbal não faz sentido. Dá a dimensão de nossa cultura formada por convenções que nem sempre têm coerência, mesmo à luz de nossas concepções existenciais. Um resultado que não se efetivará no futuro. Devido ao que não se consumou no passado. Fala do quê, mesmo?

Sem cogitar um amanhã que não haverá, porque o ontem não foi do jeito que o provocaria, o presente já anda complicado. Não precisamos de hipóteses que já nascem refutadas. O lance, agora, é consegui, consigo e conseguirei. Porque fiz, faço e farei. Mesmo arriscando, não recuo, não recuei, nem recuarei. Pode parecer alucinação, só que a realidade é mesmo feita de muitas demãos de fantasia.

Nunca mais perdi um voo. Ainda perderei? Não sei. Perderia? Não que eu saiba, não com a minha conivência.

Armadilhas da linguagem. Não temamos o silêncio. O silêncio também é uma conversa. O silêncio é uma coisa boa.

*Tuty Osório

É jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS.

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