Com o título “Boçalidade capataz”, eis artigo de Alexandre Aragão de Albuquerque, mestre em Políticas Públicas e Sociedade (Uece) e especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Ele aborda as doações para vítimas das enchentes do RS e certa preocupação do governador Eduardo Leite (PSDB).
Confira:
Nenhuma ditadura presta. Afirmou o artista brasileiro Caetano Veloso por ocasião da comemoração dos seus 75 anos de idade, em agosto de 2017, em relação à canção “Podres Poderes”, primeira faixa do álbum “Velô”, lançado em 1984.
Podres Poderes procede forte crítica poética tanto aos autoritarismos estruturais – políticos, religiosos e econômicos – componentes da base cultural geradora da formação da América Católica, espanhola e portuguesa, (“Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América Católica, que sempre precisará de ridículos tiranos?”), como aos autoritarismos individuais expressos no verso “motos e fuscas avançam os sinais vermelhos, e perdem os verdes, somos uns boçais”.
Boçal diz respeito àquelas pessoas grosseiras, incompetentes, corporativistas, que têm dificuldade de refletir, de realizar e acolher pensamentos lúcidos e coerentes que impliquem comportamentos consoantes com a construção do bem comum, com o respectivo respeito à diversidade.
Nesta semana o governador Eduardo Leite (PSDB – RS) afirmou estar preocupado com o volume de doações chegando de todos os recantos do Brasil em solidariedade ao povo gaúcho, afetado pela tragédia ambiental, porque, segundo Leite, “quando você tem um volume tão grande de doações físicas chegando ao estado, há um receio sobre o impacto que isso terá no comércio local” (Carta Capital, 15/05/2024).
Indaga-se: receio de os empresários não poderem faturar em cima da desventura sofrida pelo povo gaúcho? Aqui, portanto, em tal manifestação, a boçalidade alcança níveis inimagináveis, uma boçalidade capataz, podendo-se constatar o enorme valor e atualidade da crítica de Veloso.
Como se sabe, o cargo de capataz (ou feitor) foi criado pela Coroa portuguesa, em 1501, em defesa de seus interesses colonialistas. O capataz era um trabalhador assalariado do senhor do engenho que fiscalizava o trabalho dos escravizados para obter destes sua máxima eficiência.
Assim, na tragédia do Rio Grande do Sul é possível escutar o grito da Terra, a voz da Natureza clamando por responsabilidade, cuidado, proteção e conservação das florestas, dos rios, dos oceanos, de todos os ecossistemas que sustentam a vida em nossa casa comum, Gaia. Degradação ambiental, desmatamento, poluição, erosão do solo, são desafios urgentes exigindo ações imediatas de indivíduos, grupos e nações.
Nos quatro anos do desgoverno Bolsonaro, o desmatamento acumulado da Amazônia chegou a 31 mil km2, equivalente ao território da Bélgica (Carta Capital, 18/07/2022). Uma das consequências provocadas pelo desmatamento, em virtude da expansão agrícola, é reduzir a capacidade do solo de absorver água, aumentando o escoamento superficial, contribuindo para enchentes, como acontece no Rio Grande do Sul onde o agronegócio contribui decisivamente para a ocorrência de tais desastres ambientais e humanos.
O uso intensivo de maquinário pesado para compactar o solo, como tratores e colheitadeiras, reduzindo sua porosidade e capacidade de infiltração da água, leva a um aumento do escoamento superficial. Um solo compactado é caracterizado pela falta de espaços vazios (poros) entre as partículas do solo. A compactação ocorre quando as partículas minerais são comprimidas, expulsando água e o ar do solo. Essa redução de porosidade prejudica a troca gasosa e o fluxo da água no perfil do solo. Além disso, práticas como aração excessiva, gradagem profunda e falta de rotação das culturas, aliadas à erosão causada por fortes chuvas, contribuem decisivamente para compactar o solo.
Quando se trata de desenvolvimento agrícola no Brasil, outro tema relevante e complexo é a monocultura. Monocultura refere-se ao cultivo extensivo de uma única cultura em grande área, como ocorre com a soja ou com a pecuária. No período Bolsonaro, essas monoculturas foram altamente incentivadas em detrimento da agricultura familiar e de sistemas mais diversificados.
Ocorre que o avanço da fronteira agrícola para expansão de monoculturas implica na maioria das vezes em desmatamento: áreas de floresta, como a Amazônia e o Cerrado, são devastadas para se transformarem em terras agrícolas. Isto faz do setor agropecuário o responsável por parcela significativa das emissões de dióxido de carbono (CO2), resultantes de emissões diretas, como o metano produzido pela pecuária, quanto pelas indiretas, relacionadas ao desmatamento. A ciência demonstra que o aumento das emissões de CO2 contribui para o aquecimento dos oceanos, ao aumento da intensidade dos eventos climáticos extremos, como furacões, enchentes e ondas de calor (Coontrol.com.br, 01/03/2023).
Mas o agronegócio é um setor empresarial de fortíssima atuação ideológica, alimentada pela mídia oligárquica empresarial brasileira. A linha mestra desenvolvida pela Rede Globo é “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”. De fato, cerca de 80% da produção do agronegócio corresponde a commodities agrícolas. Nada a ver com a produção de alimentos para as famílias brasileiras. Quem responde por 70% da alimentação dos brasileiros é a agricultura familiar (Diplomatique.org.br, 21/01/2019).
Durante o governo Bolsonaro, houve um aumento acelerado na liberação de agrotóxicos para o Agro. Entre 2019 e 2022, foram liberados 2.182 tipos. Tal liberação avassaladora representa o maior número de registros para uma gestão presidencial. Com o agravante: a série histórica do Ministério da Agricultura mostra o crescimento do registro de agrotóxicos a partir do Golpe de 2016, coincidentemente quando foi promovida uma reorganização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) naquele mesmo ano, refletindo o aprofundamento da política capataz com o agrotóxico no governo Bolsonaro, que aprovou, somente em 2021, 550 novos agrotóxicos, número recorde (Brasil de Fato, 12/01/2022). Portanto, na verdade o Agro é Tóxico.
As enchentes do Rio Grande do Sul vêm desnudar o simulacro daquilo que está por trás dos podres poderes. A tragédia não é causada pelas águas, mas pelas decisões políticas.
*Alexandre Aragão de Albuquerque
Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .