“Há reflexões que aconselham a não sermos individualistas, embora até para somar seja preciso cada qual ocupar o seu lugar na operação”, aponta a escritora, jornalista e publicitária Tuty Osório. Confira:
Atualizando as últimas sobre trabalho, o amigo alegrava-se, enfatizando que respirar já era muito, em dias de semeadura. Desde sempre eu soube que a colheita é de todos e que o capinar não tem que ser sozinho. Não é, se buscarmos as alianças à nossa volta, com olhar e mãos a acolher e a entregar. Tudo o que se faz em coletivo flui e ganha consistência. É mais um motivo para gostar de viajar, seja porque for. Numa viagem, nada acontece em solidão. As ações sucedem-se numa corrente combinada.
Comparo a labuta e a brincadeira a uma orquestra. Cada instrumento a seu momento, cada tocador a sua entrada, num crescendo. Seja a compra no mercado, o passeio com as crianças, a tarefa do dia a trazer recursos que sustentam tudo o mais. Há reflexões que aconselham a não sermos individualistas, embora até para somar seja preciso cada qual ocupar o seu lugar na operação. Para sermos muitos, iniciamos por ser um. Coloque a máscara primeiro em si mesmo, diz o aviso dos procedimentos de voo antes da subida ao céu. Os hindus mergulham em si mesmos para alcançar o Absoluto, que nós, ocidentais, chamamos de Deus.
Deus que está no meio de nós. Está nos livros. Dos cristãos, dos budistas, até dos que acreditam que não acreditam. De um jeito ou de outro, com ou sem a razão, estar em movimento é, inclusive, um ato de fé. Fé em nós, nos outros, no presente que estrutura o futuro que às vezes nos parece roubado. Quanto mais consciência, mais temor de perdê-la. Se pararmos de medir, qual será o Norte a nos indicar o Sul? Talvez seja a pergunta que nunca conseguimos responder. O cuidado ao invés do controle. A disciplina que liberta, enamorada eterna de oprimir.
Fomos nômades na origem da civilização. Assentamos para garantir a sobrevivência com menos perigos. O Visitador da Savana abre caminho na mata com fogo, para alcançar os viventes que o aguardam para serem aconselhados, curados. É uma tradição africana, onde um andarilho iluminado leva a paz aos sedentários das aldeias. A cada grupo fixado, corresponde um cuidador de almas e de corpos que dele dependem para seguirem parados. Quietos, porém, ativos. O ser que se move é o que costura a harmonia.
São muitas palavras a descrever os contrastes do barulho com o silêncio. A tempestade que antecede a bonança. A catástrofe que prepara a reordenação. A crise que forja a solução. O arado que revolve a terra para que as sementes virem plantas a brotar grãos.
Não fosse a tristeza, a alegria não faria sentido. Tenho tido vontade de rir e de inspirar risos. À minha volta muitos sofrem e fico constrangida. Até perceber que sorrir traz força, salvação.
(Excepcionalmente, a crônica da escritora Tuty Osório é publicada neste domingo. No sábado, voltará ao horário habitual)
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS