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“Sadismo Animal”

Nicolau Araújo é jornalista

“Qual cabra macho teria tamanha coragem para assassinar o papagaio do coronel senhor prefeito Humberto?”, aponta em conto o jornalista Nicolau Araújo

Confira:

Entre os quatro suspeitos, o delegado tinha uma única certeza: quem matou o pobre papagaio acreditava ter razões de sobra para cometer tamanha atrocidade. Cabeça para um lado, asas para o outro, pés dependuradas, inúmeras penas espalhadas que antes não podiam ser imaginadas em tão pequeno corpo.

Para o médico da cidade, o crime seria de fácil solução:

“Não é o motivo que irá entregar o criminoso, mas o sadismo”, relatou ao delegado o doutor Américo, no auge dos seus 89 anos.

Logo a morte do papagaio despertou a curiosidade de toda a cidadezinha. Até um repórter da rádio regional foi deslocado para cobrir o fato. Afinal, qual cabra macho teria tamanha coragem para assassinar o papagaio do coronel senhor prefeito Humberto?

Seria um recado para o homem mais poderoso em uma terra de pistoleiros? Será que o pobre papagaio testemunhou algo que não deveria? Ou algum louco teria chegado à cidade?

Dos suspeitos, dois já estavam presos. Um deles entre a vida e a morte no precário hospital municipal. O infeliz teve a má sorte de ser detido pelos jagunços do coronel. Os outros dois estão foragidos. Mas não deverão ir longe. Foi o que garantiu o coronel. Todos ex-funcionários da fazenda com motivo para se vingar do antigo patrão, diante do não recebimento de salários e das condições de trabalho escravo.

Inconsolável estava a filha do prefeito, sinhazinha Adelaide. A moça mais linda da região era quem cuidava do papagaio há mais de cinco anos. Passava o dia e a noite perto da pobre ave.

O filho do juiz da cidade, Quinzinho, que todos sabiam do seu interesse em namorar a filha do coronel, ainda tentou consolar a moça ao oferecer um novo papagaio. Mas o próprio prefeito recusou a generosa oferta. A prioridade seria a captura do sádico assassino.

A autópsia do doutor Américo revelou um dado interessante na cabeça do papagaio: quem degolou a infeliz ave, queimou-a com um charuto à altura do pescoço. Por descuido, por certo.

Antes que algum infeliz ousasse pensar no charuto do prefeito, o único na cidade a consumir esse tipo de fumo, o próprio coronel tratou de apresentar o assassino: o gato da fazenda, que, por coincidência, estava com a boca queimada por um charuto.

“A queimadura na boca do gato certamente queimou o pescoço degolado do papagaio”, deduziu o coronel. A versão do prefeito de imediato foi acatada pelo delegado, que deu voz de prisão ao animal.

À noite, o coronel visitou o juiz para pedir um rigoroso julgamento para o acusado. O juiz, que jogava xadrez com o doutor Américo, garantiu o rigor. Na saída, o coronel abordou Quinzinho na varanda. Disse que, na próxima semana, o rapaz deveria anunciar o seu casamento com Adelaide.

Com os olhos arregalados, o rapaz tremia. E o coronel emendou:

“Sabe, antes do gato triturar o maldito papagaio, ouvi claramente a estúpida ave repetir o que talvez a minha filha costumava falar todas as noites: ‘Acorda, Quinzinho. O velho malvado está para chegar da farra’”.

Mais trêmulo ainda, o rapaz balançava a cabeça em um sinal que estaria de acordo com o casamento.

Da biblioteca, doutor Américo gritou:

“Eu não disse, coronel, que o sadismo iria entregar o assassino”?

O forte homem então caminhou de volta para a entrada da casa e lentamente retornou à biblioteca. E o doutor completou:

“O sadismo é da natureza dos felinos”.

Nicolau Araújo é jornalista

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