“Alece 190 anos – Um Legislativo dissidente na terra do Padre Cícero” – Por Barros Alves

Barros Alves é jornalista e poeta

“Na história de Juazeiro do Norte, assomam duas personalidades, cujos nomes estão também indelevelmente inscritos nos Anais da história do Ceará: o taumaturgo e santo popular Padre Cícero Romão Batista e, de forma inseparável, Floro Bartolomeu”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves

Confira:

As narrativas históricas, por mais isentas que possam parecer, normalmente pouco se distanciam de uma parcialidade que, a rigor, já está presente nos fatos narrados. Assim é que no mais das vezes o narrador tende a amenizar os defeitos ou exaltar as virtudes de personagens, quando não os santificam ou demonizam. Na história de Juazeiro do Norte, assomam duas personalidades, cujos nomes estão também indelevelmente inscritos nos Anais da história do Ceará: o taumaturgo e santo popular Padre Cícero Romão Batista e, de forma inseparável, Floro Bartolomeu, como a assegurar veracidade à frase de Thomas Carlyle: “a história de um povo passa necessariamente pela biografia dos seus protagonistas.”

Floro Bartolomeu da Costa, médico formado na respeitável Faculdade de Medicina da Bahia, em Salvador, a quem sobrava ambição e não faltava espírito de aventura, com ser esculápio a clinicar pelos sertões da Bahia, deu-se também aos negócios da garimpagem e extração de diamantes no interior daquele Estado. Certamente munido de boas informações aquele jovem bateu à porta do Padre Cícero em maio do ano de 1908. “Bigodão cofiado, cabelo à escovinha e voz meio fanhosa”[1], ele se apresentou ao líder religioso, que já naquele tempo envolvera-se com a política partidária, depois dos constrangimentos e perseguições que lhe foram impostos pela Santa Madre Igreja, à qual, diga-se para justiça, jamais foi infiel. Floro ali chegara farejando as minas de Coxá, assunto que aqui não nos interessa dissertar. O médico baiano, por um desses inexplicáveis desígnios do destino, a partir daquele momento passaria a fazer parte da vida do Padre Cícero e assomaria como protagonista de fatos relevantes não apenas da história de Juazeiro do Norte, mas do Ceará, um deles a instalação de uma Assembleia Legislativa dissidente na Terra da Mãe das Dores, episódio dos mais turbulentos da política cearense.

O Padre Cícero se transformara em líder inconteste de todo o Cariri cearense em razão dos desdobramentos do chamado “Milagre da Beata”.[2] Punido pelos superiores, permaneceu fiel à Igreja, mas ingressou na política partidária a partir da campanha para tornar Juazeiro independente de Crato, tendo sido o primeiro prefeito. Floro Bartolomeu se tornou uma espécie de lugar-tenente do vigário, conseguindo grande ascendência sobre o líder religioso ao assumir papel de conselheiro inseparável do padre. Arguto, astuto, inteligente e ousado, o Dr. Floro sabia das possibilidades de ascensão política ao lado do padre. A oportunidade não tardou. A queda da oligarquia comandada por Antônio Pinto Nogueira Acioly, em 1912, com a consequente ascensão ao poder do Cel. Marcos Franco Rabelo ensejou a que o Juazeiro do Norte e, consequentemente, o Dr. Floro ocupasse posição de destaque nos fatos que se sucederam a partir de uma eleição mal resolvida do substituto de Acioly. Com efeito, apesar de um acordo entre as forças políticas decaídas e os rabelistas, onde o próprio padre Cícero passou a ocupar a 3ª vice-presidência do Estado, não houve quórum suficiente na Assembleia Legislativa para sacramentar a eleição de Rabelo. Dos 30 deputados votaram apenas 12. Sem reação contrária imediata e arrimado na filosofia do fato consumado, Franco Rabelo assume o governo, mas sem a sustentabilidade tão necessária depois dos distúrbios que retiraram o velho Acioly do poder.

Franco Rabelo, cearense que há mais de vinte anos não punha os pés na terra natal, não teve tato nem tino suficiente para a convivência política com as velhas raposas. Desconhecia os meandros da política local. Nem com os seus próprios correligionários se houve bem. Por um lado, fustigava os adversários; por outro, nomeou como coordenador político de seu governo “o Dr. Paula Rodrigues, cidadão rico e honrado, mas sem o menor vínculo de popularidade, devido justamente às suas atividades fidalgas, e que pouco ou nada fizera em prol da nova situação do Estado.” [3] Paula Rodrigues iniciou um processo de acirramento e mesmo tentativa de desmoralização das lideranças de Juazeiro, em especial do Padre Cícero e de Floro Bartolomeu.

De par com a insatisfação que aumentava no Estado, em especial no Cariri, em nível federal não havia nenhuma simpatia pelo homem colocado à frente do governo do Ceará. Na presidência da República, o Marechal Hermes da Fonseca, delegara amplos poderes ao senador Pinheiro Machado para resolver o problema do Ceará. Convocado ao Rio de Janeiro em setembro de 1913, quando a situação já caminhava para um conflito bélico entre o Crato rabelista e o Juazeiro, Floro Bartolomeu permaneceu na capital federal cerca de três meses, fazendo articulações diárias com políticos cearenses e com o próprio Pinheiro Machado. Em Juazeiro, o padre Cícero e os seus amigos sofriam toda sorte de desacatos morais por parte de rabelistas e até agressões físicas das forças policiais. Disso tudo tomava conhecimento o poder central. Finalmente, decidiu-se que o governo de Franco Rabelo deveria chegar ao fim. Era um governo ilegal que assumira sem o voto da maioria dos parlamentares, relembravam os partidários da defenestração de Rabelo. A missão de convocar os deputados que não compareceram à referida sessão legislativa realizada no ano anterior, foi entregue a Floro Bartolomeu. Ele também deveria estabelecer um governo paralelo para sedimentar a queda de Rabelo. Isto ficou assentado na carta que o Senador Francisco Sá escreveu ao Padre Cícero, em 29 de outubro de 1913, na qual ele afirma que a presidência da “Assembleia legal” deve ser exercida por Floro: “Para esse cargo deve ser eleito quem aqui mais se esforçou pelas medidas que estão sendo tomadas em favor da nossa política e que aí representará as garantias de prestígio e de força de que precisa a ordem legal. Esse deve ser o próprio Dr. Floro, cujo nome encontrará o mais decidido apoio da política federal.”[4]

Para executar o plano, Floro Bartolomeu chegou ao Juazeiro no dia 22 de novembro de 1913, em companhia do deputado José de Borba Vasconcelos. Eles driblaram o cerco policial que já se fazia presente em torno de Juazeiro, com ordens de prendê-los ou matá-los. No dia 9 de dezembro o governo toma conhecimento da presença de Floro em Juazeiro e ordena que a tropa se prepare para invadir a cidade. Floro age rápido e na noite daquela data reúne seus homens, depõe o prefeito rabelista e determina o desarmamento e a prisão da força policial local. Apressa a convocação da Assembleia para o dia 15, data em que efetivamente foram instalados os trabalhos e eleito o presidente do colegiado, o próprio Floro, consoante o acordado. Antes faz comunicação às autoridades federais:[5]

13.12.1913

Exmo. Sr. Marechal Hermes, D. Presidente da República

“Os deputados estaduais eleitos neste Estado, Ceará, em 1º de dezembro de 1912 para servirem durante o quatriênio compreendido entre este ano e o de 1916, de acordo com o artigo 10 da Constituição, considerando que não puderam reunir-se como preceitua artigo 13 mesma Constituição, pelo fato de ter o Tenente Coronel Franco Rabelo apossando-se ilegalmente do governo Estado ou interrompido pelos meios mais violentos, como fossem ordenado ou consentido que soldados e desordeiros os tentassem assassinar, incendiar-se após saques os seus prédios de residência em Fortaleza; considerando que inibidos de exercerem seus mandatos continuaram a ser vítimas das mesmas perseguições, ainda coagidos nas suas vidas e seus bens; Considerando que como resultado de semelhantes atos até hoje o Estado não pode entrar no regime da ordem constitucional, pois, em todas as regiões e interiores reina insofismável anarquia; Considerando que pelos mesmos motivos os Conselhos Municipais legalmente eleitos, reconhecidos e empossados depois de resposto à força de armas substituídos por outros cujos membros nunca foram eleitos; Considerando que alguns desses Conselhos autorizados livremente exerceram seus mandatos por habeas corpus do Supremo Tribunal de Justiça, até hoje não podem gozar dessas regalias sendo desrespeitada assim a mais alta corporação nacional; Considerando que o presidente do Estado é um detentor ilegal do poder e assim os atos de sua ação governativa não podem ter valor jurídico, bem como que pela mesma razão alastrou-se todo o Estado séria anarquia em todos os departamentos administrativos; Considerando finalmente que na capital do Estado é humanamente impossível sob o regime de violência em que se acha reunirem-se conforme determina a lei; pois, corre imediato risco de suas vidas e de suas famílias, resolveram como local de maior garantia aqui nesta localidade, reunirem-se a fim de que sem serem coagidos possam exercer os direitos que a soberania do povo cearense lhes conferiu. E porque foi pelos mesmos deputados que aqui se acham em maioria, feita respectiva convocação no dia 5 do corrente mês de dezembro, para no dia 15 mesmo mês ter lugar citada reunião, vimos respeitosamente, em nome maioria deputados comunicar a V. Exa. acentuando que esta resolução além de imprescindível por ser a reivindicação de uma direito, tem seu especial fim o restabelecimento da ordem constitucional do Estado do Ceará. Respeitosas saudações. Dr. Floro Bartolomeu da Costa, Dr. Aurélio de Lavor, Dr. José de Borba Vasconcellos, Cel. Pedro Silvino de Alencar, Cel. Gustavo Augusto Lima, Cel. Antônio Pinto da Silva, Cel. Joaquim Alves da Rocha, Cel. Antônio Luiz Alves Pequeno.”

(Este telegrama foi enviado também simultaneamente aos presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Tribunal da Relação do Estado do Ceará.)

Irineu Pinheiro, testemunha ocular dos fatos, relata ter sido o dia 18 de dezembro, três dias depois de instalada, a data em que a Assembleia revolucionária sacramentou a dualidade de governo no Estado, elegendo Floro Bartolomeu como governador do Ceará. A Franco Rabelo restava submeter-se às decisões da Assembleia de Juazeiro do Norte, renunciando ao cargo, ou a reação armada. Optou pela segunda via. Juazeiro resistiu. Mais: as forças revolucionárias comandadas pelo Dr. Floro, José de Borba Vasconcelos e Cel. Pedro Silvino invadiram o Crato e não contentes de terem derrotado os batalhões enviados ao Cariri, rumaram para a capital. Porém, antes que adentrassem em Fortaleza, no dia 14 de março de 1914, o governo federal decretou intervenção no Estado e exonerou Franco Rabelo. Nomeou interventor o Cel. Fernando Setembrino de Carvalho, então recém-nomeado para comandar a guarnição local do Exército. Dias depois Setembrino recebeu a patente de general.

Vale concluir este artigo com o comentário de Irineu Pinheiro: “Foi, pode-se dizer, o Dr. Floro uma como que revivescência daqueles caudilhos, os quais, no primeiro meado do século passado, agitaram os cenários do extremo sul do Ceará e mais de uma vez fincaram nas dunas da capital a bandeira de suas reivindicações. Mais feliz do que eles, que acabaram prisioneiros em terras estranhas, ou fuzilados, ou ainda caídos no tumulto dos combates; mais afortunado, atingiu o Dr. Floro Bartolomeu as eminências do Congresso Federal e, ao morrer, reboaram-lhe em torno do esquife as salvas a que têm direito os generais do Exército brasileiro.”[6]

[1] Lira Neto. Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2009, pág. 293.

[2] No dia 1º de março de 1889, uma sexta-feira da quaresma, a hóstia sagrada teria se transformado em sangue na boca da Beata Maria de Araújo. O caso rendeu um processo canônico contra o Padre Cícero e daquele tempo a esta parte muito se dito e escrito sobre o fenômeno.

[3] Cf. Anselmo, Otacílio. Padre Cícero – Mito e Realidade. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968, pág. 367 ss.

[4] Pinheiro, Irineu. O Joaseiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. 2ª edição. Editora IMEPH, Fortaleza, 2011, pág. 182.

[5] Barros, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. (Org.). Padre Cícero Romão Batista e os Fatos de Joaseiro – Autonomia político-administrativa. Editora Senac, Fortaleza, 2012, pág. 275.

[6] Pinheiro, Irineu. Op. cit., pág. 18.

Barros Alves é jornalista e poeta

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Uma resposta

  1. Artigo muito proveitoso. Barros Alves sempre majestoso em suas colocações!

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