“Amar, verbo intransitivo” – Por Tuty Osório

Ainda que não mais seja
Tuty Osório é jornalista, publicitária e escritora

“Antigamente ter inimigos provava caráter. Diziam. Hoje temo que seja mais prudente não arrumar confusão”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório

Confira:

Mafalda é uma Shitzu. Diz a lenda que é uma raça que vem da mistura entre Lhasa e Pequinês, realizada por monges tibetanos há milênios para presentear o imperador da China. É um cão indoor, dentro de portas, que busca a escuridão e o silêncio como se ainda habitasse mosteiros. Tem personalidade de gato e pula parecido aos felinos, numa espécie de câmera lenta. Shitzu, pela mesma lenda, significa cão leão.

Na real, a Mafaldinha é a nossa querida. Está velhinha e maravilhosa. Saudável, padece de umas dificuldades, raras vezes, logo superadas. É parceira, amiga, de uma dedicação comovente. Se choro fica de plantão ao meu lado, até me sentir serena. Se grito, o que é quase impossível, agita-se. Se me alegro, corre à minha volta, em festa. Anda zangada com o capitalismo. Tem contribuído imenso pro sistema, ultimamente. Remédios, exames, ração especial, probiótico. Mas o que fazer? Ela está consciente e rola sobre o chão frio da cerâmica branca da sala, feliz de se refrescar nestes dias de aquecimento local, porque global.

Um cãozinho do vizinho do prédio perto chorava e fui assuntar. Mafalda estava inquieta e latia bastante, o que é pouco usual na sua estirpe. Descobri que o humano maltrata o bichinho. Perdi a noção do perigo e fiz ameaças. Que absurdo ter coragem de tamanha crueldade com um ser que se entrega em confiança. Um passante me repreendeu preocupado. Agora já foi, pensei… Melhor o risco que a vergonhosa omissão.

Os olhos da minha amiguinha canina não viram a aventura. Olham-me com o que quero definir como doçura, no entanto. Sabedora, ou não, do breve duelo verbal com o malfeitor, consola-me à sua maneira. Um outro vizinho tranquiliza-me. Diz que não foi grave o que eu disse. Que era preciso mesmo uma advertência. Quem não tem paciência não arrume companhia. Serve para mim em relação a desafetos. Antigamente ter inimigos provava caráter. Diziam. Hoje temo que seja mais prudente não arrumar confusão. Embora continue com dificuldade em controlar a indignação, sobre muitíssimos assuntos.

Melhor sentar num canto e pensar a respeito. Solidária, Mafalda ajeita as patinhas junto às minhas pernas cruzadas no chão, rente à mesma parede, viajante em reflexão semelhante.

Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais

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