“Apocalipse Integrado” – Por Tuty Osório

Ainda que não mais seja
Tuty Osório é jornalista, publicitária e escritora

“Com a chegada do digital, o jogo chegou perto, como muitas outras coisas que antes habitavam muito longe”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório

Confira:

Nunca tive o hábito de jogar. Meus pais nunca curtiram. Lá em casa não rolava nem o inocente biribinha do final de semana. Uma vez fui dupla de um namorado na mesa familiar e fiz tanta bobagem que me expulsaram do torneio. Não fiquei chateada. Tinha avisado antes e só sentei porque insistiram, talvez por não acreditarem que eu pudesse ser tão alheia a algo que era trivial para eles.

Também nunca condenei. Em ocasiões de pano verde, arrumava outra distração. Acompanhar a turma do violão, assistir um filme, arrumar assunto pra conversa, ficar na equipe de preparação das bebidas e dos petiscos. Gosto de mimar, garantir que estão todos bem alimentados e satisfeitos com as guloseimas sólidas e líquidas.

De quando em quando surgia uma figura lendária que havia perdido a cabeça, e as economias, no jogo.

Figura de casos contados, da literatura, das lendas, mesmo. O Jogador, do Dostoiévski, célebre russo autor de Crime e Castigo, é emocionante. Consegue que sintamos os sobressaltos do personagem, vivendo suas aventuras a ponto de sentirmos alívio ao perceber que não o somos, afinal. Foi sempre distante e folclórica para mim, essa situação de jogos. Santos ou marginais, eram de outras vidas.

Com a chegada do digital, o jogo chegou perto, como muitas outras coisas que antes habitavam muito longe. Não de mim, propriamente, porém, tenho notícias de amigos que se encalacraram jogando pela internet. Vejo notícias de pessoas que não ganham salário mínimo afundadas em dívidas de apostas nas chamadas BETS. Já se instalou até CPI no Congresso Nacional, descrita por jornalistas como um circo de atrocidades, tal o baixo nível das perguntas e dos depoentes.

Impressionou-me o relato, a respeito de uma influenciadora arguida na tal CPI, que fatura milhões com seus vídeos sobre nada e tem milhões de seguidores. Uma cretinice normalizada, um pavor sem precedentes, e há quem nos xingue de elitistas quando condenamos tais pessoas e suas práticas. Tenho

sentido medo dessas e desses influenciadores, de quem e como influenciam e dos que me taxam de elitista.

Sinto medo da aparente inversão de tudo. Umberto Eco ironizou as resistências e os aplausos à massificação, separando os revoltados dos flexíveis. Agora parece que está misturado, diluído, sei lá. O horror tem cara de anjo, vestes de boneca, sorriso de garotinha travessa.

Como se diz no Ceará, Vália!!!Santo Antônio da Purificação!!

*Apocalípticos e Integrados, por Umberto Eco, Editora Perspectiva, São Paulo

Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais

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