“Sem compreender se era ajuda ou assalto, continuei correndo, agora atrás dele”, contou a jornalista e publicitária Tuty Osório. Confira:
Congonhas, 2002. Era um trabalho em São Paulo, capital e interior. Um tema incrível, ecoturismo. Namorado novo. Jantar, dançar. Passeios pelo litoral, deslumbrante Ubatuba, Maresias. Nesse conto de fadas uma falta.
Minha filha, hoje com 27 anos, naquela época era pequena demais para ficar longe de mim. Viajava com ela no coração e retornava depressa. Não havia aqueles túneis de acesso ao avião, para todos os voos. Dispersei-me do portão de embarque e tive que correr muito. Pelo saguão, pela pista, pela escada.
No meio da travessia um rapaz de barba, cabelos longos, vestido de jeans, tomou a minha sacola e saiu correndo na minha frente. Sem compreender se era ajuda ou assalto, continuei correndo, agora atrás dele. Entrou no avião, guardou a bagagem no local adequado, abraçou-me e sumiu misturado aos outros passageiros.
Sentei-me sem ar, suada, descabelada, desnorteada. Cinto, instruções, decolagem. Passado o período de restrições, saí em busca do meu herói casual. Não estava no voo. Percorri, diversas vezes, o corredor, inspecionando todos os lugares. Nem sombra. Questionei a tripulação, descrevi-o com detalhes, nenhuma lembrança de ninguém assim.
-A senhora entrou correndo, isso a gente lembra, mas sozinha. Ninguém entrou ou saiu depois. A senhora foi a última a embarcar – afirmaram.
Não sei se confusa ou assustada, senti um aperto na garganta. Seria estresse? Algum distúrbio mais grave? Estava vendo coisas, pior, vendo pessoas que não existiam? Voltei à minha poltrona e gostei de acreditar que poderia ter sido um anjo. Ou O Anjo. O meu anjo da guarda que em pequena minha avó me apresentou, ensinando a oração de proteção, ajoelhada aos pés da cama, antes de dormir.
– Rogai por mim esta noite e amanhã por todo o dia, dizia.
Minha filha tinha uma apresentação da escola, no dia seguinte. Ia cantar num coral imenso de crianças, no ginásio gigante onde a veria de muito longe e ela teria que me imaginar, na arquibancada. Eu havia prometido que chegaria a tempo. E se perdesse aquele voo, que tristeza para ambas. Daí que era bom acreditar que mesmo sendo aquele anjo, uma resistência maior nas minhas pernas e no meu fôlego, um anjo me conduzira. Ou um viajante bondoso que escapara à atenção da equipe de bordo.
Fato é que o anjo, fosse o que fosse, fosse quem fosse, passou a fazer parte do meu lendário pessoal. A versão mais bonita, de tanto ser repetida em minha memória virou a verdade daquele dia. Atualmente chamam de narrativa. Implicante que sou, de palavras e expressões da moda, não nomeio, receosa de quebrar o feitiço.
Aeroportos, aviões, rodoviárias, estações, vagões, são esconderijos de seres encantados que gargalham, alegres, sem se deixar ver. Loucura do bem, porque não acreditar que aconteceu magia naquela parada?
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS.