As Traças, os livros e o tempo – por Mirelle Costa

Resistir é verbo de ação. Conheci o Clube de Leitura As Traças, que existe há trinta anos, em Fortaleza. Cheguei em dia de celebração, na festa das três décadas. Além de cheiro de livro, senti um cheiro de vida pulsante, em movimento.

(Clube de leitura As Traças. Foto: Paulo Henrique Martins)
(Clube de leitura As Traças. Foto: Paulo Henrique Martins)

“Se você não lê, vive fora do ar”

Logo na entrada, obras de algumas integrantes do grupo e diversas publicações documentam e eternizam o clube. Senti o quanto escrever é realmente valoroso. Em alguns minutos de conversa com As Traças, percebi claramente que elas têm uma voz e muito a dizer. 

(Parte do acervo bibliográfico e literário do clube de leitura As Traças. // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Parte do acervo bibliográfico e literário do clube de leitura As Traças. // Foto: Paulo Henrique Martins)

“Nossa reunião é sempre na segunda quinzena do mês. Temos mais de duzentos títulos em nossa biblioteca. Se você não lê, vive fora do ar”, conta Lúcia Lustosa, presidente e fundadora do clube que parou somente na pandemia. 

(Evelucia Lustosa e Lúcia Lustosa. Mãe e Filha. Foto: Paulo Henrique Martins)
(Evelucia Lustosa e Lúcia Lustosa. Mãe e Filha. Foto: Paulo Henrique Martins)

Evelucia Lustosa é amiga das Traças. Mais que amiga, é uma incentivadora ativa do clube. Filha da presidente do grupo, Lúcia Lustosa, e sobrinha da Socorro Lustosa, também organizadora do coletivo de leitura. Ela brinca ao se reconhecer como uma Tracinha. Título mais que merecido, afinal, ela auxilia e incentiva cada encontro, mesmo sendo uma empresária super ativa, enviou-me foto dos aniversários, de eventos onde as Traças se encontram e, através do olhar dela tão generoso por essa história de trinta anos, eu entendi a importância de conhecer essa história de perto. “Sempre foi muito bom assistir a alegria de cada encontro. Ver a evolução de leitoras para escritoras foi outro grande privilégio. Algumas já partiram, deixaram suas ausências físicas, mas um grande legado nas suas passagens: Carmem, Socorro Borba, Izaura, Janice e Teresa Teles. Lembro que em 2019 após a partida de D. Izaura, uma traça muito querida e ativa, algumas disseram que não conseguiriam retornar. Fizemos um encontro e propus que trouxessem algo que simbolizasse a lembrança da amiga. Decoramos uma grande mesa onde cada uma colocava seu objeto e contava uma história relacionada a ela. Foi muito lindo ver a emoção e o entrelaçar de seus caminhos. O momento foi marcado de força para continuarem. São amigas que se aceitam nas diferenças, aprendem umas com as outras e estão sempre prontas pra recomeçar”, emociona-se Evelucia Lustosa.

Deise Albuquerque frequenta o grupo há doze anos. “Fica difícil agora, assim de nome, lembrar a quantidade de títulos que lemos”. E nem precisa, Deise. Ao conversarmos por cinco minutos, percebi que sua bagagem é rica e vai além do que podemos contar. 

Todos os meses, as Traças escolhem um título para lerem e têm a oportunidade de também sugerir obras. “São Lucas Médico de Homens e Almas é um livro que já li doze vezes. É, antes de tudo, uma obra histórica”, conta Ana Catarina Ibiapina.

(Ana Catarina Ibiapina e Deise Albuquerque)
(Ana Catarina Ibiapina e Deise Albuquerque)

Zenaide Santana conta que sentiu falta das reuniões do clube, no período do isolamento, por causa da pandemia. “Você poder transmitir algo que sente para que alguém possa compartilhar é indescritível e isso é possível com a literatura e a música”, conta Zenaide Santana, que, de repente, levanta e canta a música Fascinação para todo o grupo com direito a agudos que surpreenderam a muitos (inclusive, eu).

(Zenaide Santana // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Zenaide Santana // Foto: Paulo Henrique Martins)

Ser escritor é ser farol e retrovisor ao mesmo tempo

Dulce Cavalcante faz parte da Academia Mossoroense de Letras e escreve há quarenta anos. “Eu lia muito, mas escrevia pouco. Ao ouvir um incentivo da amiga Lúcia Lustosa, quando ela disse que quem lê muito, escreve, comecei. Agora mesmo estou com um livro de crônicas pronto para ser publicado. Escrever é saber deliciar-se do mundo inteiro. Você precisa se abrir para escrever alguma coisa. Escrever é participar da Vida, vale a pena. Ser escritor é ser farol e retrovisor, ao mesmo tempo”, emociona-se a escritora.

(Na foto, Laize Menezes, uma das integrantes mais antigas do clube; Dulce Cavalcante, que foi homenageada no evento, e Socorro Lustosa. // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Na foto, Laize Menezes, uma das integrantes mais antigas do clube; Dulce Cavalcante, que foi homenageada no evento, e Socorro Lustosa. // Foto: Paulo Henrique Martins)

O clube de leitura mais antigo de Fortaleza?

Angélica Sampaio, presidente da Academia Metropolitana de Letras (ALEF), participou da celebração, que contou com sarau e apresentação teatral. 

“O que chama a atenção é a longevidade desse grupo. Acredito que seja o clube de leitura mais antigo de Fortaleza (ou um dos mais antigos), inclusive, na ALEF, homenageamos o coletivo recentemente, pelo incentivo à leitura cearense. São trinta anos de fomento à formação do público leitor e isso incentiva até a criação de outros grupos”, diz a escritora Angélica Sampaio. 

(Angélica Sampaio, presidente da ALEF // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Angélica Sampaio, presidente da ALEF // Foto: Paulo Henrique Martins)

O tempo total de vida de uma traça na natureza é de cerca de seis meses, mas as “Comedoras de livros” esbanjam vontade de continuar com o clube que está aberto a novas integrantes. 

Socorro Lustosa celebra, com orgulho, os trinta anos do grupo. “Conseguimos reanimar o clube depois da pandemia e, agora, estamos fazendo um intenso trabalho para continuarmos. Trabalhamos de forma organizada, por equipes que selecionam os(as) escritores(as). Estudamos clássicos, escritores brasileiros e cearenses, uma maneira de homenagear a nossa literatura. Muitas vezes um escritor não é conhecido por nós, fortalezenses, então, precisamos divulgar cada vez mais os autores da nossa terra. Gostaríamos que o grupo crescesse”, explica Socorro Lustosa. 

Exemplos que arrastam

Neta de Traça, Liz Lustosa, de onze anos, conta que já leu mais de duzentos livros. “Quando eu tinha oito anos, via o clube da vovó ativo e quis fazer um também. A gente tem uma reunião por mês e algumas amigas que tiravam nota baixa agora estão tirando até dez”, orgulha-se Liz, que, ultimamente, está lendo cinco livros por mês. 

(Socorro Lustosa e Liz Lustosa. Avó e neta // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Socorro Lustosa e Liz Lustosa. Avó e neta // Foto: Paulo Henrique Martins)

“Eu não tenho tristeza de velhice”

Helenira Limaverde despediu-se do marido há dois anos, o jornalista Narcélio Limaverde. “Só resiste ao tempo o que é bom. Por isso, esse grupo segue vivo e produtivo até hoje. A literatura também pode ser um bom caminho para lidar com as nossas perdas. Eu não tenho tristeza de velhice”, conta Helenira Limaverde.

(Helenira Limaverde, que foi homenageada na comemoração dos trinta anos do clube)
(Helenira Limaverde, que foi homenageada na comemoração dos trinta anos do clube)

“Quem gosta de mim sou eu”

Beni Alcântara está no grupo desde o início. “Ser uma Traça foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida. Sempre gostei de ler, desde pequena. Escrevi três livros: Quem gosta de mim sou eu; Quem espera, sempre cansa e A vida tem a cor que a gente pinta, todos estão esgotados“, orgulha-se a escritora. 

(Beni Alcântara e suas obras // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Beni Alcântara e suas obras // Foto: Paulo Henrique Martins)

“Eu entrei nas Traças para gostar de ler”

“Aqui eu treinei minha escrita. Depois de casada, depois de ser mãe, comecei a escrever. Entrei nas Traças para gostar de ler. Recentemente escrevi sobre uma colega centenária, escritora, que partiu aos cem anos e deixou saudades no grupo”, conta Regina Torres.

(Da esquerda para a direita, Laize Menezes, Fátima Parente, Lúcia Moura e Regina Torres // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Da esquerda para a direita, Laize Menezes, Fátima Parente, Lúcia Moura e Regina Torres // Foto: Paulo Henrique Martins)

“Quando estava sofrendo, coloquei tudo em poesia”

Lúcia Moura também é uma traça antiga, tem 25 anos de grupo. Ao perguntar se ela é também escritora, ela relutou, mas as amigas a repreenderam: “Ela é sim!” E ela sorriu, decidida a se reconhecer. “Em um momento da vida eu estava sofrendo, morta de apaixonada e coloquei tudo em poesia.  Foi uma catarse. Nos meus sessenta anos, compilei esses poemas que escrevi durante toda a vida e eu mesma fiz meu livro. Escolhi sessenta pessoas importantes pra mim para presentear com os exemplares”, conta, às gargalhadas. E quando eu pergunto uma obra que marcou sua vida, ela responde: “Ninguém É Uma Ilha, uma história de um garoto com deficiência. Deu-me lições, principalmente ao me ensinar que devemos prestar mais atenção aos outros”, reflete Lúcia Moura. 

Eu não sabia que precisava conhecer As Traças até o dia desta matéria. A celebração de três décadas do clube me trouxe incômodas e necessárias reflexões: Será que eu vou ser assim com o passar dos anos, cheia de vida? O que eu posso fazer hoje para continuar produtiva por muito tempo? Talvez elas nem tenham parado muito para pensar nisso, para planejar. Apenas fizeram! Ler, escrever, atuar, produzir, cantar, planejar, inspirar. Quantos movimentos essas mulheres fazem para manterem-se ativas e influenciar outras gerações. Atingiram o marco de manter o grupo ativo e ininterrupto (até chegar a pandemia) por trinta anos. E mesmo com a covid, elas resistiram e resistem às perdas, às frustrações da vida. Ao mesmo tempo, conhecer o clube As Traças fez-me refletir que, tão importante quanto ler um livro por mês é viver um dia de cada vez com muita alegria, apesar de… 

Agradeço à Ana Geisa pela colaboração para a realização desta matéria.

(Graça Muniz, Ana Célia Silva, Sireide Araújo. Fazem parte da equipe Traças Criativas, com mais duas Traças Lindalva e Bernadete // Foto: Paulo Henrique Martins)
(Graça Muniz, Ana Célia Silva, Sireide Araújo. Fazem parte da equipe Traças Criativas, com mais duas Traças Lindalva e Bernadete // Foto: Paulo Henrique Martins)
As Traças As Traças,livros,tempo Blog do Eliomar
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Respostas de 4

  1. Ótima matéria. Parabéns a essas mulheres. Parabéns, Mirelle!

  2. Excelente reportagem que leva ao leitor conhecer o magnifico trabalho de integração e conhecimento de gerações que passam a se identificar. Aqui fica meu prêmio “divulgação ” .pela reportagem

  3. Gostei de saber da existência desse grupo. Ler e escrever é um caminho muito gostoso, uma grande viagem de aprendizado. Em 2022 publiquei meu livro de poesias, Coração Jardineiro. Apresentei no Grupo Mulheres , livros e vinhos onde fui muito acolhida e imensamente feliz! Continuo lendo e escrevendo muito! Não sei viver sem isso, sem esse propósito! Um grande abraço a todo o grupo!

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