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“Campo de concentração na seca de 1932 no Crato recebeu ‘mais de 30 mil flagelados'”

Flamínio Araripe é jornalista

“O Crato foi escolhido pelo governo federal para receber as levas de nordestinos atingidos pela seca”, aponta o jornalista Flamínio Araripe. Confira:

Campo de concentração. Em 1932, o abrigo dos flagelados da seca no Crato era chamado de campo de concentração. Ficava no sítio Buriti, na saída da cidade à margem da estrada para Juazeiro do Norte.

O Crato foi escolhido pelo governo federal para receber as levas de nordestinos atingidos pela seca. Com base em fontes oficiais, citadas pelo jornalista e escritor José Alves de Figueiredo Filho, o campo de concentração, “conforme dados dos dirigentes, chegou a abrigar para mais de trinta mil flagelados”.

O relato da seca consta no livro da autoria de Figueiredo, “Meu mundo é uma farmácia – Memórias de um farmacêutico”. Instituto Progresso Editorial S.A. (IPÊ), 1948, reeditado pela editora Casa José de Alencar, UFC, 1966.

Preocupados com a seca, prefeitos da região do Cariri se reuniram no Cassino Sul Americano, no centro do Crato. Um jornalista de 28 anos, J. de Figueiredo Filho, como assinava, chegou para cobrir a reunião com prefeitos, “à cata de notícias frescas para a próxima edição” do jornal semanário em que trabalhava.

No encontro, reporta o jornalista cratense, os prefeitos decidiram o que pedir em telegrama ao governo estadual e federal para enfrentar a situação de seca. “O salão do Cassino Sul Americano ficou repleto de representantes dos municípios”, registrou. O prédio, então com cinema no térreo e cassino no andar superior, inaugurado em 1918, foi um marco cultural e social do Crato. Hoje está abandonado.

Pânico na população do Cariri

“Crato começou a receber retirantes de todas as procedências. Principalmente dos sertões paraibanos. (…) A falta de chuvas surpreendeu em cheio aquela gente sertaneja. Só um recurso lhe restava – a retirada para outras terras mais afortunadas. (…) As ruas do Crato, como cidade principal da zona caririense, enchiam-se cotidianamente de flagelados. Dentro de pouco tempo, com a onda crescente de famintos, o pânico contaminou toda população do Cariri”.

Diante do quadro – prossegue Figueiredo – “movimentaram-se as pessoas representativas da região a fim de pedir ao governo medidas urgentes para minorar o flagelo que estava tomando proporções inquietantes. Foi convocada, em Crato, reunião de prefeitos e representantes da lavoura e comércio da região. Destinava-se ao estudo da ação conjunta junto aos poderes constituídos. Não raras vezes, trens foram assaltados por ondas de famintos à procura de passagens para lugares em melhor situação “.

Fornecedor de medicamentos

José Alves de Figueiredo Filho era também farmacêutico, formado em 1925 na primeira turma do curso na Faculdade de Farmácia e Odontologia do Ceará, que veio a se incorporar à Universidade Federal do Ceará. “Na qualidade de farmacêutico, conduzindo medicamentos requisitados pela comissão médica, visitei aquele grande aglomerado de pobres vítimas da seca. Gente deslocada de seus lares. Coberta muitas vezes de trapos imundos”.

Dono da Farmácia Central, Figueiredo foi, por algum tempo, como diz, “fornecedor de medicamentos do aglomerado de retirantes. Por diversas vezes, ajudei médicos e enfermeiros no serviço de cauterização de olhos, distribuição de vermífugos e vacinação contra varíola”.

“O campo de concentração possuía praças e ruas. Ostentavam tabuletas com os nomes dos encarregados do serviço. Palhoças feitas às pressas pelos próprios flagelados, com folhas de palmeiras a servirem de teto e de paredes, se amontoavam perto da Usina de Maracajá, às margens de grande extensão da carroçável que liga Crato a Juazeiro”.

“Muitas vezes percorri aquele arruado de casebres. Imundície e promiscuidade. Restos de comidas e dejeções se amontoavam nas traseiras das palhoças. Provocavam náuseas aos visitantes, não habituados às cenas de tanta miséria”.

O esforço do Crato para receber os retirantes foi exitoso, avalia Figueiredo. “Mas reinava ali ordem e certa disciplina. A alimentação não foi deficiente. Tanto assim que aquele aglomerado, sem higiene, pôde resistir durante 9 ou 10 meses, isento de qualquer surto epidêmico de importância. Só as crianças recém-nascidas pagaram bem caro sua contribuição à morte”.

“E não poderia ser de outra forma. Nem leite podia ser ali distribuído a não ser em diminutas proporções. Com alimentação fornecida pelo governo, assistência médica e sob os raios higienizadores do sol nordestino, puderam aqueles pobres seres atravessar a tormenta de 1932”, afirma.

Covas coletivas de crianças

Em depoimento a Rosemberg Cariry, publicado no livro “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” – coautor Firmino Holanda -, o prefeito Antônio de Alencar Araripe dá uma dimensão da seca de 1932 no Crato. “Diariamente se mandava abrir uma cova grande e ia-se botando os que morriam. Principalmente velhos e crianças eram os mais atingidos. E, no fim da tarde, eles cobriam aquela cova, e, no outro dia, cava-se outra. Diariamente morria gente. Eu cheguei a dizer a minha senhora, quero fazer aqui uma confissão: “Se eu tivesse recurso, faria tudo para, pelo menos, salvar aquelas crianças, uma certa quantidade, eu acolheria”.

“Acho que o que morreu mais foi criança e velho. – acrescenta Araripe – As crianças eram em número enorme. Aqueles pobres traziam papagaio, cabaça, todos os objetozinhos de uso diário que eles podiam conduzir naquela dificuldade tão grande. Nunca tinha se visto isso, mesmo antes no Crato”.

Comoção ao ver as levas de flagelados

A visão da leva de flagelados que vinha em direção à praça da Sé e passava em frente ao sobrado onde morava o prefeito do Crato, Antônio Araripe, comovia sua esposa Ana da Franca Alencar (Donita), que chorava com sua irmã Luzanira, vendo da janela o trajeto. “Meus pais sempre falavam da tragédia ocasionada pela seca de 1932”, lembra Moema de Alencar Araripe, filha de Antônio e Donita.

Aos 35 anos, Araripe informa que atendeu em sua casa um sertanejo, que dizia ser portador do ministro José Américo, da Viação. O homem, com um vozeirão, cumpria a missão de ir ao Crato avisar ao prefeito que a cidade iria receber um trem especial carregado de flagelados procedentes de Paraíba. Naquele estado, o ministro constatou pessoalmente o flagelo social da seca.

Uma parte dos flagelados foi abrigada numa área de mata cujos paus sob sombra poderia agasalhar a população, perto da antiga Casa de Caridade, relata o prefeito. “Eram mais ou menos 500 a 700 pessoas famintas, esfarrapadas. Tratamos logo de mandar comprar carne, farinha, arroz, leite para dar às crianças, enquanto melhor destino se podia dar àquele povo”. Em seguida “o governo tratou de manter o campo de concentração” ali e depois no Buriti.

O prefeito acrescenta: “Esse povo ficou aí todo dia recebendo a alimentação necessária, e todo dia afluía gente faminta pra ir se agasalhando. Era necessário, não digo diariamente, mas semanalmente, virem trens sobrecarregados, sobretudo de farinha e arroz, vindos de Fortaleza. Certamente, vinha (…) açúcar, rapadura e farinha. Médico e assistentes andavam lá quase que diariamente. Foi um período de grande dificuldade que o Crato atravessou, até que, no ano vindouro, quando se aproximava do inverno, o governo foi retirando aquele povo para diversos locais”, conclui Antônio de Alencar Araripe.

Flamínio Araripe é jornalista

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Uma resposta

  1. Parabéns pela importante matéria sobre esse episódio trágico da nossa história. Ainda bem que tínhamos ferrovia e os trens prestaram um grande serviço potencializando as ações governamentais e de solidariedade aos flagelados.

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