“É produção rica e vária aquela que o povo criou em torno do culto a São João, principalmente no terreno da crendice e da superstição”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves. Confira:
Por primeiro e por pertinente devo dizer que a Maracanaú, uma das mais importantes cidades do nosso Estado, em cujo processo de emancipação tive a honra de participar, deve ser concedido com justiça o título de CAPITAL JUNINA DO CEARÁ, porque comemora em grande estilo as festas em homenagem a Santo Antônio e a São João. No Ceará são tradicionais as festas de Santo Antônio em Quixeramobim e em Barbalha, com a famosa procissão do “Pau de Santo Antônio” onde se hasteia a bandeira com a imagem do santo. Em outras cidades, como Cedro, a tradição foca nos festejos tradicionais de São João. Em Maracanaú tanto Santo Antônio quanto São João merecem festividades que sevestendem por quase todo o mês de junho. A lenda de Santo Antônio do Pitaguary rega o imaginário popular e anualmente, a 13 de junho, leva milhares em procissão para o culto ao ubíquo santo em ambiente que ainda detém características rurais e onde está localizada uma modesta capela em aprazível colina. Quanto as festas joaninas, estas têm ganhado feição grandiosa, sobretudo nas recentes administrações de Firmo Camurça e Roberto Pessoa, que de par com suas devoções aos santos juninos e sabedores da importância do turismo cultural e religioso para o município, investiram pesado na estrutura dos eventos os quais ensejam a presença de mais de cem mil pessoas durante os dias festivos.
Dito isto, quero ater-me a aspectos culturais das festas de São João, quais sejam as fogueiras e as superstições. Com efeito, perdem-se em remotas épocas os inícios desses festejos. O acendimento de fogueiras para saudar ou comemorar eventos, por exemplo, tem origens pagãs. Dá-se conta de que ródios, coríntios e fundadores das colônias helênicas acendiam fogueiras alvissareiras. Os povos bárbaros já comemoravam o solstício do verão, que ocorre entre os dias 22 e 23 de junho, com essa piromania de feição cultual. Quando o imperador romano Júlio César conquistou a Gália (atual França), aí já encontrou povos europeus celebrando a chegada do verão e do calor com grandes fogueiras. De semelhante modo agiam povos autóctones andinos, consoante registra o folclorista Segundo Luís Moreno, na “Revista del Folklore Ecuatoriano” (1966-nº 2): “Los ciclos solares fueron épocas sagradas para los indígenas del antjguo Reino de Quito, que estaban dedicados essencialmente al Inti soberano (el Sol) y a Quilla Mama (la Luna), con liberaciones, hogueras…”
A professora Maria Lúcia Montes, antropóloga da Universidade de São Paulo, lembra que esses rituais de origem num tempo longínquo, são cultos pagãos, elaborados pelo coletivo, para a consecução de abundância e fertilidade. Ela observa também, que em muitas dessas manifestações mítico-religiosas, o povo celebrava seus mitos com sacrifícios de animais e oferendas de cereais para afastar os demônios da esterilidade, das pestes agrícolas e da estiagem.” Não cabe dúvida, portanto, de que os festejos em homenagem a São João implantaram-se nos povos indo-europeus e em outros povos, sob forte influência de elementos politeístas, entre os quais está a seita Uika.
Para ilustrar essa proximidade entre as tradições de povos pagãos e festividades religiosas cristãs, o pesquisador Marcelo Affini informa que essa seita “inspirada nos antigos celtas (povo que dominou o oeste da Europa no primeiro milênio antes de Cristo) acende grandes fogueiras ao redor do mundo, no solstício do verão europeu”. E mais: ”No Brasil, a Uika promove comemorações místicas, com mais de 500 pessoas, no dia de São João, em São Tomé das Letras (MG) e Mauá (RG)”. Segundo ainda o depoimento de Marcelo Affini, na Espanha há, também, as Hogueras de San Juan, uma tradição muito cultivada, especialmente na Catalunha.
Ao escrever sobre as lendas que povoam a imaginação dos devotos de São João e de Santa Isabel, enriquecendo sobremodo o folclore de muitas sociedades, Teófilo Braga, inexcedível estudioso da terra e povo lusitanos, assinala: “As piras simbólicas das festas eneanas orientais em que o sol é queimado em efígie, são as fogueiras que, nas festas cristãs, andam ligadas a João, filho de Isabel”. Vê-se, destarte, que mais uma vez assiste razão ao arrazoado de Paulino Nogueira, o qual com voz de mestre pontifica: “As fogueiras, desde muito desviadas e transviadas da lenda primitiva e suspeita. são antes um sinal de animação aos sortilégios, feitiçarias, filtros, crendices e abusões, por se tomar o grão Batista por protetor incessante e ativo de moças, de raparigas trêfegas ambiciosas de casamentos forçados, de felicidades mundanas.” E, cavalgando a ortodoxia de seu catolicismo ultramontano, Paulino Nogueira exclama: “Que disparate na crença de um povo cristão!”
Mas quem institucionalizou, por assim dizer, esse amálgama de culto do calendário hagiológico cristão à folia oriunda de procedimentos pagãos e idolátricos? Foi provavelmente o Papal Gregório Magno que abriu as portas para esse casamento sincrético, oficializando o dia 24 de junho como data comemorativa do nascimento de João, o Batista, assim cognominado por ter batizado o Messias no Rio Jordão. Era o final do século VI e, a partir daí, estavam as festas joaninas estabelecidas e o nascimento do precursor do Mestre passou a ser saudado no melhor estilo pagão, com danças, jogos populares, adivinhas, comidas, bebidas, “consultas a oráculos aos quais a credulidade popular atribui misteriosas revelações”, na expressão de Paulino Nogueira. As fogueiras e o foguetório complementam a festa sacro-profana desde aqueles tempos a esta parte.
Quanto às lendas e superstições que surgiram em torno da lúdica e festeira devoção a São João, contam-se muitas. A mais importante lenda que fala de São João e Santa Isabel, mãe dele, é fruto da inventiva popular com o claro objetivo de justificar a fogueira. Ei-la: “Um dia, nossa Senhora, que trazia no seio Nosso Senhor Jesus Cristo, foi visitar a sua prima, Santa Isabel, que também trazia em seu bendito seio a São João Batista. Apenas as duas sagradas primas se avistaram e o divino Batista, que não tardava a nascer, se ajoelhara em adoração a Jesus. Santa Isabel, que isto sentira, não tardou em comunicar o milagre à Virgem que, exultando, perguntou-lhe:
- – Que sinal me dareis quando nascer o vosso filho?
- – Mandarei plantar nesta montanha um mastro com uma boneca e acender em torno uma grande fogueira, respondeu-lhe. E de feito, na véspera de São João, a Mãe de Deus, vendo de sua morada uma fumacinha, labaredas e o mastro, partiu indo visitar Santa Isabel.”
Desde então, concluem ingenuamente os devotos que assim Isabel avisou a Maria o nascimento do6 batizador. Bem diz o Apóstolo Paulo que “muitos acreditam em fábulas profanas de velhas caducas”. Mas é desse modo que se deve festejar o santo, com mastros e fogueiras. A lenda transcrita acima colhi-a em livro de Mello Moraes Filho. Existem, porém, muitas versões sem que lhes seja tolhido o sentido original.
É produção rica e vária aquela que o povo criou em torno do culto a São João, principalmente no terreno da crendice e da superstição. As jovens solteiras são as que se quedam com maior ansiedade ante as promessas que o imaginário estereotipou e a imaginação amplia e dá sabor de mito. Porém, não poucos se deixam levar por esses sentimentos míticos, notadamente entre as populações do meio rural ainda não contaminadas pela insensibilidade que acompanha o progresso tecnológico. O matuto, em sua ingenuidade, receia, por exemplo, que o diabo lhe venha dançar no terreiro se ele esquecer a obrigação de acender uma fogueira.
Muito apropriadamente o homem do nosso sertão adusto extravasa sua intensa religiosidade nas noites alegres de São João, cantando versos que a musa popular elaborou com grande inspiração e singeleza:
O que não fizer fogueira
Na noite de São João
Fica odiado do povo
Tem fama de mau cristão.
Da fogueira o seu clarão
Nos alegra, nos faz bem.
Viva o senhor São João
E os seus devotos também.
A falta mais agoureira
Conhecida no sertão
É não fazer uma fogueira
Na noite de São João.
Certamente por este e outros motivos é que o visitante do sertão, em noite de São João, vai ver muitas fogueiras em frente das casas. Também nos centros urbanos, o costume que guarda a história de muitos povos e de muitas mundivivências, ainda não feneceu. É a cultura da resistência dizendo sim à alma (anima) em detrimento da máquina que pouco tem de Eros e muito de Tanatos. Esses atos e gestos do povo preservando sua história, dão razão ao respeitável folclorista Florival Seraine quando escreve que “a cultura popular é o saldo da sabedoria oral na memória coletiva”.
É Paulino Nogueira quem registra muito desta oralidade memorial coletiva, nascida da fé e da crença no São João. Lembremos algumas cantigas e superstições que nos vêm desde o final do século passado, num maravilhoso exercício de transmissão:
São João é filho de Santa Isabel
Depois foi padrinho de Cristo
E pôs-lhe o nome de Manuel.
Quem for cristão bem crê nisto.
São João está dormindo
Não acorda, não!
Dê-lhe cravos e rosas
E manjericão!l
Se São João soubesse
Que hoje era dial
Baixava do céu à terra
Com prazer e alegria.
As superstições ainda hoje correm mundo. Eis algumas: 1) Planta-se um dente de alho na véspera do dia consagrado ao santo. Se amanhecer grelado, consegue-se o que se deseja. 2) Deixa-se ao sereno uma bacia d’água. Antes do sol nascer no dia de São João, mira-se nela. Se a água não lhe refletir a figura, não festejará o santo no ano seguinte. 3) Passa-se em cruz, sobre a fogueira, um copo d’água. Depois quebra-se dentro um ovo. Espera-se até a manhã seguinte para olhar o resultado. Se vir um navio, terá viagem a fazer; se uma igreja, haverá casamento; se um caixão, morte na certa. 4) Passa-se um copo d’água sobre a fogueira, depois bochecha-se um gole e fica-se atrás da porta da frente de casa, rezando. O primeiro nome de homem ou mulher que ouvir, será do futuro noivo ou noiva. Essas superstições ainda são populares em rincões interioranos. No começo do século XX eram popularíssimas em Fortaleza, segundo refere Paulino Nogueira, que nos remete a um poema escrito por Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga) para sua querida Marília. No poema Lyra, há toda uma influência dessas crenças do povo. Senão vejamos como canta o apaixonado bardo Tomás Antônio Gonzaga, o inconfidente que escrevia sob pseudônimo:
Arde o velho barril, arde a cabeça,
Em honra de São João, na larga rua;
O crédulo mortal agora indaga,
Qual seja a sorte sua?
Eu não tenho alcachofra, que a luz chegue
E nela orvalhe o céu de madrugada
Para ver se rebentam novas flores,
Aonde foi queimada.
Também não tenho um ovo que despeje
Dentro de um copo d’água, e possa nela
Fingir palácios grandes, altas torres
E uma nau à vela.
Mas, ah! Eu bem me lembre: eu tenho ouvido
Que na boca dum bochecho d’água tome
E atrás de qualquer porta atento esteja
Até ouvir um nome.
Que o nome que primeiro ouvir é esse
O nome que há de ter a minha amada:
Pode verdade ser; se for mentira,
Também não custa nada.
Trovas populares são o forte da poética joanina. Vejamos esta que lembra a azáfama das mulheres que, em véspera de natal, fazem da cozinha, o local mais importante da casa, pois ali preparam-se as iguarias com que todos irão praticar o pecado da gula, pois em homenagem ao santo tão nosso, não pode faltar o aluá, canjica, pamonha, o milho verde e o jerimum (abóbora)
para serem assados na fogueira, bolos, batatas, pipocas e outros quitutes bem típicos dessa quadra festiva. Foi certamente pensando nesse labutar doméstico, que antecede a festança noturna, que o anônimo cantou:
A lufa-lufa de dia,
De noite fogos, balões.
A fogueira quando arde
Põe brasas nos corações.
E estas outras que fazem do santo um folião, santo do povo, no meio da gente, contagiado pela alegria reinante; com sentimentos de gente de carne e osso, um santo amorável, um tanto mulherengo:
São João por ver as moças
Fez uma ponte de prata;
As moças não vão por ela,
São João todo se mata.
São João foi para o mar
Com vinte e cinco donzelas
Embarca, não desembarca,
E São João no meio delas.
Soltar balões é outro costume apreciado por aqueles que folgam na noite de São João. A religiosidade popular criou a ideia de que o balão leva os pedidos de graças dos devotos para São João. Poucos sabem, porém, que tal brincadeira é proibida pela legislação brasileira desde o ano de 1941, quando a Lei das Contravenções Penais (artigo 28) definiu tal folguedo como contravenção. Já o primeiro Código Florestal, de 1965, também proibia que se solte balões, em virtude do grande número de incêndios causados por esse costume junino. Soltar balões, portanto, dá cadeia. Com o objetivo de alertar as pessoas para esse perigo é que o poeta popular Sepalo Campelo, escreveu em 1988, um belo poema que transcrevemos e cujo título é: “Pensa um pouco mais na vida / Não deixes soltar balão!”
Antes que você decida
Quanto ao tipo de lazer
Pensa no que vais fazer
Pensa um pouco mais na vida.
A nação constituída
Lembra a todo cidadão
Vamos festejar São João
Sem causar dano a ninguém,
pra que tudo corra bem
Não deixes soltar balão!
É bom vê-lo na subida
Mas é melhor ser prudente,
Evita um grave acidente
Pensa um pouco mais na vida…
Não te tornes fraticida
Ferindo o teu próprio irmão
Porque da consumação
Ninguém voltará atrás,
Para que se durma em paz
Não deixes soltar balão!
Não tem rota definida
Balão não tem pouco certo,
Nem sempre há bombeiro perto,
Pensa um pouco mais na vida…
O perigo é na descida
Quando a bucha cai no chão,
Entra nesse mutirão
Em defesa da cidade,
Na tua comunidade
Não deixes soltar balão!
Os festejos juninos, em especial as festas antoninas (de Santo Antônio) e joaninas (de São João) certamente continuarão ainda por muito tempo no futuro que se nos descortina, a encher de alegrias as populações nordestinas.
Barros Alves é jornalista e poeta