Horas na estrada. Ônibus convencional. Passageiros em pé, paradas frequentes, nada de ar condicionado. Aventuras da juventude. Agora já as enfrento com travas no joelho e temor de uma queda no sobe, desce escadas. Porém, encaro. Minha índole nômade arrasta-me para a estrada.
Interior de Mato Grosso, cidades incríveis, um Brasil diferente do litoral, onde, praticamente, moro. O Centro Oeste é um caso muito à parte. Grande, exuberante, verde, parte plano, desmatado. Brasil do século XX. Brasil que vem de longe: Cáceres, à beira do Rio Paraguay, há mais de 245 anos, no mínimo. Curiosa, bonita, em parte preservada, em parte abandonada. Pessoas acolhedoras, simpáticas, entregues a seu destino. Apesar de tudo, de todos, acreditam.
Mato Grosso, nome advindo da densa mata fechada, atravessada pelos bandeirantes que subiam o Rio Iguatemy, saindo de São Paulo, até encontrar outros rios – Cuiabá, o principal, deu nome à capital. Mato Grosso é um lugar pontuado pelos rios, presença forte em praticamente todo o território. A vida das populações é pautada por esses rios – economia, cultura, sonhos. Originários, escravizados, mais tarde chegaram os migrantes do norte e do sul, povoando a mata. Transformada em múltiplos espaços, até num Santuário Ecológico, o Pantanal.
Um dos temas debatido na escuta de pesquisa que me levou a Cáceres, em 2022, era a regulação da pesca do dourado. Restringir para preservar e as opções de substituição de renda. Bacana de ouvir, um pescador falar de seu dia a dia, impactado pela proteção ambiental. Consciente e temeroso. Disposto a respeitar e com medo
da fome ameaçando a sua família. Pedindo ajuda, orientação, caminhos.
Concluído o trabalho, deixei Cáceres de madrugada, num Transfer que se chamava assim, não consegui saber porque. Era, na verdade, um corredor de múltiplas baldeações. Até chegar ao aeroporto de Várzea Grande, cidade vizinha a Cuiabá, que atende à maioria dos voos nacionais e internacionais, troquei de veículo umas 4 vezes, carregando a bagagem, correndo para caber. No início fiquei meio desesperada. Logo em seguida entabulei conversas, ouvi e contei histórias, quase me esqueci para onde estava indo.
Ressalto que os motoristas, as controladoras de passageiros, jamais perderam a gentileza no trato, a delicadeza no tom de emissão das caóticas instruções. O trajeto de Cáceres a Várzea Grande foi longo, tumultuado. Porém, sem escassez de ternura, de cuidado. A noite virou dia e às 9 da manhã fui rebolada, em bom cearês, à porta do Aeroporto Internacional Marechal Rondon.
Aí aconteceu a magia que tantas vezes me tomou. A qual desejo que continue me tomando.
A sensação de chegar a um aeroporto. Território de ninguém e de todos, padronizado em maior ou menor luxo, acolhedor porque conhecido, previsível. Exausta pela falta de sono e as horas de ônibus, em ônibus, busquei um cantinho onde pudesse me encostar na bagagem e tirar um cochilo. Não durmo com facilidade, porém, o cansaço é o melhor sonífero. Depois de um panini com espinafre, na Casa do Pão de Queijo, combinei com a atendente um arremedo de sofá perto de tomada. Ela fechou o balcão e me deixou ficar.
Devo ter adormecido por uns quarenta minutos. O inconsciente alerta pelo voo que me levaria a Brasília para prosseguir um outro
trabalho. Levantada do banco, organizei as malas para o deslocamento e ganhei as salas de embarque.
Franquias repetidas, objetos sem serventia pragmática, comidinhas, chocolates, o Rei do Mate. Em Guarulhos, Campinas, Vitória, Maceió ou Galeão, o mapa é mais ou menos o mesmo. Com maior e menor variedade. Em capitais que não são megalópoles, como é o caso de Cuiabá, há sempre o charme de uma lojinha com produtos locais, genéricos e específicos a um só tempo, enfim, recordações.
Tem quiosque mais a cara de aeroporto que o da Chilli Beans? Eu recebo mensagens de uns três, há anos, por ter comprado umas besteiras em paragens de conexão. O aeroporto de Várzea Grande tem o seu, cuidado por um rapaz de óculos enormes, cabelo colorido, que chama a gente de meu bem.
Romantismo total quando penso, estou, em aeroportos. Quaisquer. São símbolos em si mesmos, de coisas não tão boas, inclusive. Sabemos disso. Só que não dá pra viver de mau humor. Tem que pitar poesia, perseguir a perfeição dos haicais.
Numa ocasião, em Recife, a logística do Projeto vacilou nas reservas e fiquei na rua, sem hotel. Os celulares não tinham Planos Família, Total e afins. Liguei de Orelhão, a cobrar, para a minha irmã, em Fortaleza. Ela aconselhou de pronto: – Vai para o aeroporto. Lugar mais certeiro, não há. E não é proibido sentar numa cadeira e ficar -. Assim fiz. Passadas algumas horas os colegas do Projeto foram lá, resgatar-me. Aproveitei a espera para observar os passantes, cada qual com sua missão, sua cruz, sua doçura.
Usando uma frase da moda que, ao contrário da maioria das demais, adoro de paixão, concluo:
…E por aí, vai…
Nos Bailes da Vida (Milton Nascimento)
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS