“Vale tudo para tentar salvar a democracia? A pergunta é bobinha”, aponta o jornalista Moisés Mendes
Confira:
Gilmar Mendes fez o que até boa parte da esquerda se nega a admitir. O jogo pesado contra o fascismo de facções, golpistas, vigaristas, milicianos e todo tipo de bandidagem do Congresso não será vencido com a conversinha de senhores de (falsos) punhos rendados de um mundo liberal imaginário de uma democracia bonitona, que na real é feia e cai aos pedaços.
É bobagem para enganar trouxas o debate, que engambela parte da própria esquerda, para saber se Mendes está certo ou errado. Esse não é um jogo de certo e errado, estúpido. É uma guerra de bandidos eleitos, que acionam reações no impulso, como essa de Gilmar Mendes.
Podem dizer, e andam dizendo, que Mendes chegou até a tentar conversar com alguns senadores para avisar o que faria. Não importa se avisou que iria bloquear, por liminar, a estratégia da direita e do bolsonarismo de comer as instituições e seus ocupantes pelas bordas para cercar Lula de novo.
Só a esquerda mais ingênua, e também a esquerda com altos mandatos em Brasília, entra na conversinha dos entendidos nas hermenêuticas liberais, de que Mendes afrontou o sistema de freios e contrapesos e as prerrogativas do Senado.
O que o Congresso menos tem é freio. Não tem freio, não tem escrúpulos, não há nada que consiga contê-lo como um reduto infestado de facções, para muito além dos antigos compartimentos da Bíblia, do boi e da bala. Esse Congresso não é o pior da história. É o mais bandido, o mais chantagista.
Mendes mandou um recado aos que ainda acreditam que a democracia irá se recuperar a cada eleição. Com figuras que dispõem de R$ 20 milhões em emendas e mais R$ 5 milhões para cada um, de um fundo eleitoral que financia a permanência dos mesmos, se quiserem, até morrer? Com Trump, com as big techs, com a dinheirama dos financiadores ainda impunes do golpe?
Não há como enfrentar essa gente com toco de canivete. Alexandre de Moraes e Flavio Dino não podem ser os únicos a peitar a extrema direita, mesmo que tenham o suporte protocolar dos parceiros de STF.
Mendes chutou toda a barraca, porque o jogo que foi vencido em 2022 será outro no ano que vem. Os especialistas liberais, que sustentam as pautas dos jornalões com suas teses, continuarão repetindo que o ministro pisou na Constituição, que foi teratológico e até esquerdista.
A porção mais rasa da esquerda, a que só consegue nadar em partes baixas, chega a entrar nessa pauta. E repete cansativamente que Gilmar Mendes foi quem impediu que Lula virasse chefe da Casa Civil de Dilma em 2016.
Essa mesma porção insiste, como desculpa por não ter conseguido mobilizar ninguém em 2016 e em 2018, que o Supremo poderia ter controlado a Lava-Jato e evitado o golpe e a prisão de Lula. O Supremo deveria ter feito o que a política não conseguiu fazer.
E agora acusam Mendes de fazer pelo Supremo, no cume do ativismo, o que a política deveria ter feito. Mendes se aperfeiçoa como anomalia, não mais pelos congressos que realiza em Lisboa, mas por afrontar as estruturas podres do Congresso cada vez mais próximas do crime organizado.
O próprio Mendes pode expor a racionalidade da sua decisão de segurar o avanço da extrema direita, oferecendo as bases jurídicas que as sustenta. Em tempos de normalidade, seria um bom debate, apesar de cansativo. No meio da guerra, é diversionismo.
Porque a arena desse debate não é apenas a do direito, estúpido. Estamos tratando das armas possíveis para a defesa do que nos resta. Ah, mas assim a Constituição pode ser ferida. Nada vem sendo mais ferido de morte do que a Constituição, por ações destruidoras do Congresso.
O gesto do ministro foi de legítima defesa de um patrimônio institucional ameaçado. Não é preciso aceitá-lo, mas compreendê-lo no contexto do golpe permanente. O lamentável é que, como tem acontecido, juristas e aparentados divirtam-se mais com o episódio do que a política com todas as suas formas de se expressar.
Esse é o constrangimento: o Supremo faz por todos nós, incluindo o enfrentamento do golpismo, o que não conseguimos fazer. Numa hora dessas, poucas coisas são mais bobinhas do que a pergunta se vale tudo para tentar salvar a democracia.
Declaro, por pensamento que podem ser apenas divagações, que estou ao lado de Gilmar Mendes, assumindo publicamente, com minhas irrelevâncias, todos os riscos dessa cumplicidade.
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre