“O garoto que cuida dos carros do estacionamento da Biblioteca Pública não tem acesso a livros. Mal sabe o que se passa naquele lugar tão lindo, tão na cara e que a cara lhe vira. Não tem quem me faça achar isso banal”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório
Confira:
O amigo Celso Oliveira lançou um livro comemorativo dos seus 50 anos de carreira. Serão diversos lançamentos. O primeiro foi na Biblioteca Pública Estadual, um equipamento cultural, como dizem, belo, colorido, confortável, estruturado para receber e acolher. Muitas salas, obviamente muitos livros e para alegria geral muitas pessoas foram abraçar o Celso, o fotógrafo que faz poesia com a câmera, que retrata a paisagem humana, sobretudo, como ele próprio se define. Um retratista de gente, pessoas da rua, na rua, caminhando, brincando, amando, vivendo e nesta última tomada, habitando. O livro reúne mais de 60 fotos integrantes de uma exposição anteriormente realizada com esse tema, exatamente, aqueles que habitam, habitantes.
Como sempre, vou com minha pequena caravana. Mãe, filhas, nunca falhamos umas com as outras. Saio pouquíssimo da toca, por opção e muitas vezes por dificuldade em estar fora. Sou um ser dentro de portas, nestes dias que passam e comigo ficam. O Celso é daqueles amigos inadiáveis que me fazem sair com emoção e devoção. Há o abraço a ele, aos filhos dele ali presentes, à Lia, sua companheira que faz arte com traços, cores, música. Dou entrevista a um jovem hábil, gentil, que me mobiliza a vencer a timidez provisória. Falo do Celso, da poesia viva das suas fotos, daquelas pessoas fotografadas que parece que vão sair comigo pelo espaço, após atravessarem a moldura ilusória que as prende no plano do papel, da tela.
No debate breve que acontece no centro da sala, os debatedores sobre elegantes cadeiras de Dom Espedito Seleiro, – o mestre sertanejo das alegorias mobiliárias e vestimentas do amado Cariri -, Celso descreve as personagens das suas fotografias como viradores do cotidiano. São luta, tradição, revolução. Fala sem retórica, com seu jeito despojado do rapaz criado no Rio de Janeiro dos morros, jamais corrompido. Foi o jovem que estreou no foto jornalismo aos 17, brilhou na publicidade antes dos 30, artista desde o primeiro click aos 16. Hoje é referência cada vez mais e mais.
Saio cedo do evento porque estou nocauteada de um trabalho exaustivo de dias, minha mãe e minha filha Camilla acompanham-me, solidárias. Mais abraços a amigos e amigas que não vejo há muito, o beijo materno na filha Manuela, e vou-me. No estacionamento, sou surpreendida por um guardador de carros menino homem, que me elogia dizendo que tenho cara de quem gosta muito de ler. Não sei se pelo horário da noite em que estamos saindo da Biblioteca, se porque tenho cara disso, mesmo. Recebo como um comentário bom e pergunto-lhe se, também, gosta de ler. Responde-me que para ele é difícil. Estupidamente, espanto-me, prometo levar-lhe livros. Repete que tem dificuldade é de ler. Repete com um sorriso, como se quisesse desculpar-se. Um peso instala-se na minha garganta.
O garoto que cuida dos carros do estacionamento da Biblioteca Pública não tem acesso a livros. Mal sabe o que se passa naquele lugar tão lindo, tão na cara e que a cara lhe vira. Não tem quem me faça achar isso banal. Não tem nada que me console, me conceda indulgências, o perdão pelo meu pecado da omissão, pecado das mãos que são minhas e são cúmplices das pedradas atiradas, simbolicamente, naquele menino.
Um habitante escapou das páginas do livro do Celso e estava bem ali, a um passo. Veio no meu encalço, justo eu, que tanto sonhei que um dia caminharia lado a lado com um deles.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais