“Bolsonaro caminha para se tornar a evidência de que a democracia brasileira produz finalmente anticorpos contra o autoritarismo”, aponta a jornalista e comunicadora Sara Goes
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Na manhã de 17 de maio de 2013, Jorge Rafael Videla, o “senhor da vida e da morte” da Argentina, encerrou sua biografia sob o frio seco e cortante de uma massa de ar polar que havia tomado a província de Buenos Aires. Na capital, os termômetros marcavam 3 graus. Em Marcos Paz, onde o presídio Federal de segurança máxima recebia Videla desde 2010 para o cumprimento da pena de prisão perpétua, o vento do descampado reduzia a sensação térmica a quase zero. A chuva, que tantas vezes serve de metáfora para purgações históricas, só caiu no dia seguinte. Videla morreu na secura de uma manhã gelada e limpa, sem lágrimas do céu e sem qualquer gesto simbólico da natureza.
Há uma simetria pedagógica entre o fim do ditador argentino e o ocaso carcerário de Jair Bolsonaro neste final de semana. Ambos acreditaram na própria eternidade e na impunidade como atributos naturais. Videla morreu sentado no vaso sanitário de sua cela, vítima de uma queda de pressão seguida de parada cardíaca, às 8 e 25 da manhã. Bolsonaro, diante da execução penal iminente de 27 anos, tentou transformar vigílias de oração em biombo para uma tentativa de fuga frustrada. O que une essas figuras não é apenas a ideologia, mas a redução final à burocracia penal, onde não há mitos, apenas prontuários.
O processo de desidratação do poder autoritário segue roteiro conhecido: Videla perdeu as patentes e os privilégios e terminou como o Preso 39.444, administrado pelo mesmo Estado que tentou destruir. A conversão da prisão domiciliar de Bolsonaro em preventiva opera na mesma lógica de desencantamento. O Tribunal não apenas determinou a custódia, mas desmontou a logística do tumulto. A Sala de Estado onde Bolsonaro permanece preserva sua integridade física, mas o coloca no corredor do esquecimento político.
A tentativa de fuga de Bolsonaro, registrada pelo rompimento do lacre da tornozeleira à meia-noite e oito de um sábado, foi o gesto desesperado de quem percebeu que o script do golpe havia falhado. Videla escorregou dias antes de morrer, fragilizado pela idade e pelas hemorragias internas. Bolsonaro escorregou na própria arrogância ao subestimar o monitoramento eletrônico. Em ambos os casos, técnica e biologia impuseram limites que a retórica jamais poderia superar.
A solidão é o destino final de quem aposta no terror de Estado. Videla morreu isolado, repudiado pela própria cidade natal cujos moradores protestaram para impedir seu sepultamento. O corpo vagou dias pelo necrotério até ser enterrado clandestinamente sob uma lápide sem nome. Bolsonaro, por sua vez, vê sua prisão preventiva paralisar o Partido Liberal e empurrar aliados a buscar novos nomes para 2026 com velocidade quase voraz, embora essa busca seja minada pelo próprio preso, que envia recados, vetos e instruções, interditando o surgimento de qualquer sucessor que não o coloque no centro do tabuleiro. Sua recusa em permitir que alguém cresça politicamente, inclusive em sua família, o condena a um isolamento mais profundo, pois destrói as próprias alternativas que poderiam sustentar sua facção após sua queda.
É nesse isolamento que a simetria com Videla se adensa. O destino tem imaginação mórbida para punir quem acreditou estar acima das leis. Videla terminou numa latrina, reduzido a uma imagem que desmontou décadas de delírio militar. Bolsonaro, cuja biografia política sempre tentou mascarar a degradação do próprio corpo, caminha para um desfecho que pode rimar literalmente com o do argentino ou permanecer como metáfora de sua ruína. Se for literal, a história apenas confirmará o que os boletins médicos jamais admitiram voluntariamente: que as obstruções, os soluços, as estenoses e o vômito fecaloide não eram teatro, mas sintomas reais, supostamente agravados pela violência tosca empregada na tentativa de romper a tornozeleira. A fisiologia sempre foi sua testemunha menos fiel, mas a mais implacável. E se o fim vier como metáfora, será a representação perfeita da justiça divina, que às vezes opera com humor cruel, devolvendo à terra não o mito, mas o corpo que ele tentou elevar à condição de assombração nacional.
A família Bolsonaro tenta agora a cartada humanitária, alegando que soluços, problemas gástricos e o ambiente prisional ameaçam a vida do patriarca. É o mesmo repertório dos repressores argentinos, que por anos solicitaram benefícios etários. A justiça, quando enfim responde, sabe que idade não diminui responsabilidade. A Argentina negou a Videla honras fúnebres e o enterrou sem nome para evitar profanações. O Brasil, ao rejeitar embargos e preparar a execução da pena de Bolsonaro, também sinaliza que não haverá clemência institucional para golpistas.
Bolsonaro, detido para garantir a ordem pública, caminha para se tornar a evidência de que a democracia brasileira produz finalmente anticorpos contra o autoritarismo. Celebramos a restituição da normalidade, em que crimes cometidos em porões ou gabinetes encontram sua resposta legal. O fim biológico de Videla foi miserável. O fim político de Bolsonaro, selado naquela manhã de sábado, reafirma que o Nunca Más pode ser finalmente um política de Estado no Brasil.
Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net
Ver comentários (1)
Quem sempre sonhou com Bolsonaro candidato em 2026 foi a esquerda.
Os votos que o elegeram anteriormente eram de protesto contra MENSALÃO, PETROLÃO e DESVIOS DE RECURSOS PÚBLICOS.
Ele não tinha votos mas a esquerda nunca deixou de citar o nome dele, sempre com muito ÓDIO, e ajudou a criar fama.
Não temos nomes para enfrentar os desvios nos CORREIOS, INSS e outros.
Messias vai ser um novo ministro do STF.
E a falta de SANEAMENTO que mata muito mais que COVID vai continuar matando.