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“Os expulsos da floresta” – Por Tuty Osório

Ainda que não mais seja
Tuty Osório é jornalista e escritora

“Falam da resistência através da preservação das línguas originárias, das contradições que desintegram as comunidades ao incluí-las, sem plano e sem critério, na abstração do Estado político”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório

Confira:

Desacostumada de sair de casa, aperto os olhos diante da reunião de pessoas, como fazemos para receber a luz após um tempo na penumbra. O lugar é bonito, tem um movimento simpático de gente alegre, um varandão com mesas e cadeiras de bar, a cozinha aberta, mais mesinhas no jardim que contorna a pequena piscina. A aliança de um instituto dedicado ao ensino de línguas com o vão do restaurante transformado num pequeno auditório, receberá uma roda de conversa dedicada à Amazônia equatoriana. É um espaço cultural que se apresenta já na casa do início do século passado, impecavelmente reformada e conservada. Exibe um brilho literal nas portas altas de madeira lustrada, no piso reluzente de pedra e granito.

Os pesquisadores viajantes chegaram do Equador há duas semanas e deixam claro que a Amazônia é uma só, sem fronteiras definidas, única em sua rica diversidade. Diversidade que passa pelas plantas, pelos bichos, pelos habitantes que se expressam na sua relação com a mata. Lara e Daniel contam sobre a simplicidade daquelas paragens atacadas pela ação dos impiedosos em marcha pelo progresso. Falam da resistência através da preservação das línguas originárias, das contradições que desintegram as comunidades ao incluí-las, sem plano e sem critério, na abstração do Estado político. O mesmo Estado que é ausente para salvar, cravando a lança venenosa quando o objeto é a destruição.

Fotos e tópicos sustentam a fala dos jovens acadêmicos que enfiaram pés e alma naquela terra tão íntima, quanto estrangeira. As histórias que trazem não são novas, nem surpreendentes. Chocante é que não tenham data para cessar de se repetir e piorar. Acompanhada de uma cerveja alemã muito gelada, escuto os relatos com o coração apertado, a mente inquieta, porém, paralisada. Está ficando insuportável cruzar os braços, embora eu os mantenha assim. A brisa que sopra do mar da Paria de Iracema, local da casa poema onde o evento acontece, alivia o calor no meu rosto e o no meu pescoço com a ajuda da suspensão improvisada do cabelo, numa amarração desajeitada. Das palavras proferidas pelos jovens cientistas vem uma brisa intelectual que não me acolhe. Faz o que eles pretendem- remexe a acomodação, incita o desejo de fazer alguma coisa, seja lá o que for.

Ao meu lado na mesa, Camilla, cineasta da natureza que é, também, minha filha, diz baixinho que aqui ao lado, na serra, os KARÃO JAGUARIBARAS foram tocados com violência de seus territórios originais. Tiveram que adaptar seu cotidiano à aridez do sertão, num contraste com o verde úmido que antes habitavam. Deram trabalho ao poder que os oprimiu ao escorraçá-los. Poder que destinou aquelas terras ao plantio de café e mais tarde à especulação imobiliária – veio daí a bizarrice que é Guaramiranga, reduto de veranistas, beleza arrancada de um outro modelo de civilização. Lembra-me Camilla, inspirada pelo casal mensageiro da Amazônia, que hoje sabemos que as antes julgadas matas virgens são Agro Floresta, resultante do manejo respeitoso, equilibrado e coerente da natureza, pelos originários da nossa latino américa, integrada pela parte ao norte e a oeste do Brasil.

Lara, Daniel e Camilla provocam incômodo e deixam de lembrança uma imensa esperança. Sinto-me na obrigação de acreditar, não dar como dado definitivo o modelo que é obra calculada do caos. A Clínica Ambiental descrita por Lara, onde se fazem curas a partir das plantas, é parente, embora uma não saiba da outra, da prática de ingestão da florzinha nos baldios periféricos de Fortaleza – xanana contra a infecção urinária das mulheres, narrada por Camilla. Daniel, professor de alemão no Ceará, em temporada de pesquisador residente na alemã Universidade de Colônia, toca na linguagem das comunidades, feita memória em garantia de vida.

A festa que me toma vem da linda oportunidade de aprender, sempre. Do deslumbramento que é ser convidada a tal compartilhamento de experiências que transformam, resgatando humana, a desumanização.

Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais

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