“O SUS foi inspirado, baseado mesmo, no Sistema de Saúde Pública da Inglaterra, chamado de NHS”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório
Confira:
A amiga Consuelo cansou de ficar procurando os cúmplices históricos pelos lugares da cidade e arrumou um bar em casa. Adaptou um antigo deck junto ao pomar que já tinha um banheiro pedindo pra ser reformado, comprou freezer, geladeira, fogão e micro ondas a prestação e passou semanas a bolar o nome ideal. Decidiu-se por Casa de Enock, sabe-se lá por qual motivo. Criou um grupo no whatsapp para convocar a galera e poucos encontros depois virou point.
-Mulher, vai te prender essa marmota! O povo vai te cobrar de você estar em casa! – insistiam uns. – Conchita você vai ficar de saco cheio logo, amigo íntimo é bom longe! – pregavam outros. Ela nem ligou. Quem vai à Casa, e se comporta bem, ganha de prêmio a chave do portão independente de acesso. Se o comportamento piorar, a chave é confiscada. O que não aconteceu, sublinhe-se. Não era só a Consuelo que estava à caça de um canto de camaradagem sem grandes planos, com antecedência. A adesão e a colaboração foram rápidas e eficientes.
Fui pela primeira vez há poucos dias. Topei com um discurso inflamado do Zito, como se houvesse alguém contra, naquele recinto. – O SUS foi inspirado, baseado mesmo, no Sistema de Saúde Pública da Inglaterra, chamado de NHS, na sigla da língua do país, discorria ele. – Recentemente, uma jovem médica brasileira, já com especializações e experiência em Saúde Pública e Saúde Comunitária, dirigiu-se ao Reino Unido para um mestrado na Escócia. Levava a ideia de aprender mais sobre o Sistema de lá, voltar para o Brasil com conhecimentos que pudessem ser aplicados à nossa realidade, prosseguia, empolgado.
– Todo o mundo aqui já sabe. Circulou, que só, nas redes, semana passada. É uma matéria da BBC Brasil, protestou Theodora, enfadada. – Essa médica, surpreendeu-se ao ver o Brasil e o SUS como exemplos de saúde pública na Universidade escocesa, completou Miguel. – Apesar de alguns estudantes não admitirem ser possível atender um país de ampla extensão territorial como o nosso, os professores reconhecem o nosso Sistema Único como modelo, atalhou Consuelo, metendo a colher, animada.
Theodora fez cara de tédio.- Gente a ideia era relaxar, falar besteira, vocês passaram meses tentando me convencer que não é para levar a vida a sério. Agora que conseguiram, vêm com essa conversa! Não entendo vocês, protestou.
Pondero, mesmo antes de abrir o meu vinho, que apesar do sub financiamento que perseguiu o SUS desde a sua origem, após ter sido consagrado na Constituição Cidadã de 1988, o fato é que permanece de pé quase 40 anos depois, entre boicotes, distorções, negligências e tentativas contumazes de privatização.
Reforço que a Saúde e a Educação Públicas, bem como a Previdência e as Redes de Proteção Social, são essenciais em qualquer sociedade. Ainda mais num país minado por desigualdade, fome, jovens em situação de vulnerabilidade, mulheres reféns de violência doméstica e de rua, pessoas LGBTQA+ espancadas, discriminadas, assassinadas em escalas muito acima dos maiores índices do planeta.
– O nosso Brasil brasileiro precisa do SUS e ficou provado na Pandemia, quando o Sistema deu um show de inclusão. Salvou vidas, entregou dignidade, acudiu os aflitos onde estivessem, completo eu, triunfante, tal qual candidato em época de eleição. Jonas protesta comigo. – Você estava no Sistema, amiga, e aderiu a um Plano de Saúde caríssimo com medo de não conseguir atendimento numa emergência qualquer, atira.
Fico confusa e tento explicar que se continuo pagando, é porque, de certa forma, sinto-me mais segura, assim. Por outro lado, defendo o Público, no sentido do comum, do compartilhado, do acessível a toda a gente. Defendo com paixão, com indignação, com atitude, apesar da fuga enquanto usuária.
Solenemente, Zito retoma a palavra dizendo que alguns séculos nos separam da proibição do tráfico de escravos nas colônias portuguesas, por ordem da Inglaterra e que era cumprido somente na aparência, no fingimento, na hipocrisia, para constar. Na real não era cumprido, com a conivência de reis e súditos do privilégio.
Consuelo enfatiza, quase aos gritos de agitação, no sentido leninista, reforçando a ideia de que o que mostramos agora aos ingleses não é ordenado por eles. Nem é só para eles verem. Existe, é observado, imitado, seguido.
Theodora dá trégua e colabora. – Tá bom, tá bom! Com defeitos, crises, trancos e barrancos jurídicos, se qualquer um de nós tiver uma precisão e dirigir-se a uma UPA ou a um hospital público, será acolhido. Como dizem: querendo, ou não, será. Digam o que disserem as ironias e as negações. Com mais ou menos precisão, rapidez, dedicação. O fato é que será, enuncia.
Miguel arremata que tem muita gente que confirma essa história. Como tem a turma que quer provar que essa história é inviável. O Brasil dividido entre os que desejam a entrada de todos e os que se contentam com um Brasil para poucos, porque não dá para abarcar. Não dá? Ou estamos cada vez mais destituídos da imaginação política que nos conduzirá à equidade, às oportunidades equilibradas? Finaliza, como se, literalmente, atirasse a pergunta ao ar.
Theodora se zanga. – Vocês são uns chatos! Mas o SUS é o máximo. Tem que ser celebrado e defendido.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais