“Meu pai não está mais. Alberto Caeeiro assina o poema que é dito por uma das minhas filhas. A outra filha canta Gonzaguinha soltando a potência de seu coração”, aponta a jornalista, escritora e publicitária Tuty Osório
Confira:
Realizou-se o 1° de maio, dia do meu aniversário. Mãe, irmãos, sobrinhas, crianças, amigos, organizaram uma surpresa – um sarau matutino, acompanhando um alegre café da manhã com leitura de textos, entoação de canções, choro, riso, abraços, palmas. Os saraus são antigos na família.
Podem acontecer em datas marcadas ou espontaneamente, quando a Osorada se junta à volta de uma mesa e de um chão. De manhã, de tarde ou de noite. Meu pai amava esses momentos, com ou sem ensaio. Participava sempre chamando os holofotes para si, exigindo silêncio absoluto na sua deixa- falo eu ou chia um carro, anunciava.
Quando fiz 40 encontrava-me em Brasília e gravaram em vídeo a festa que chegou a mim por um DVD produzido domesticamente, dirigido e editado sem os aplicativos atuais. Uma pequena festa, com os mesmos personagens do aniversário do dia 1 de maio de 2025, cantando e dançando para mim. Sarau digital, chegado pelo avião, na era pré-link.
Este ano, chegaram os 60 com essa turminha querida em modo presencial. Já com novos integrantes, via casamento, com a consequente expansão da prole. Os sobrinhos netos mal falam. Batem palmas, dão abraços, soltam gargalhadas sonoras apontando para mim, celebrando do seu jeito a especialidade da data. Há uma ainda na barriga, que a minha imaginação sente mexer quando posto as minhas mãos no seu casulo santificado.
Meu pai não está mais. Alberto Caeeiro assina o poema que é dito por uma das minhas filhas. A outra filha canta Gonzaguinha soltando a potência de seu coração: quando eu soltar a minha voz, por favor entenda, que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando – entoa.
Poesia nas duas. A de Caeiro, repetida da fala do meu pai há 20 anos, diz que os poetas místicos são filósofos doentes e que os filósofos são homens doidos**. Outras vozes trazem o que cada pessoa ali tem a dizer sobre o meu olhar para o mundo e o que desse olhar está em cada qual.
O dia passa sem pressa. Começa com uma chuva breve. Prossegue num sol poderoso que esquenta a casa. Agradeço inspirada em Drummond. Chego aqui sem vendas, só trocas e doações. Com todos os pecados cometidos e os ainda por cometer.
**O poema completo de Alberto Caeiro ( heterônimo de Fernando Pessoa)
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais
