Com o título “Por quem os livros dobram”, eis mais um texto da lavra de Mauro Oliveira, professor do IFCE e mestre em Informática por SorboenneUniversity.
Confira;
É fim de madrugada. A linha que separa o mar e o céu, lá longe onde a terra dobra, sustenta nuvens que saem de dentro do infinito.
O sol matinal se insinua um tanto apressado, como quem foge pela janela da amante. O frescor do vento alisa meus cabelos, feito mãos de noiva na véspera. O cheiro de maresia ao entardecer me embriaga de paz, tal colo de mãe, dilatando meu sorriso Kolynos (Ah!).
O som da maré é meu mantra preferido. Abro os olhos. O dégradé da noite se desfaz relembrando amores esquecidos, enquanto jangadas solitárias espreitam, em vigília, a enseada violada pelo neon dos bares do Mucuripe. Ora direis, Augusto Pontes: “Vida, vento, leva-me daqui”!
Caminho pés na areia, encontro o casal de alemães e suas sacolas de “mercantil” cheia do lixo deixado na praia por incautos contumazes. Mais adiante, mestre Santiago me espera para uma prosa em sua jangada. Suas velas, prontas para o “take off”, explodem ao vento como a felicidade dentro de mim.
De longe, mestre Santiago já me aponta para seu amigo Manolin: lá vem o professor! Fico maravilhado com seu vigor ao erguer os troncos que empurram a jangada até o mar. Quanta coragem nos 5, 10, 40 km mar adentro! E quando a velhice não mais lhe permitir o peixe nosso de cada dia? Fujo rápido dessa “maré baixa” pra não interromper nossos olhares se abraçando.
Mestre Santiago tem em grande conta todo professor, doutor, esse pessoal formado, que estuda, vive lendo… no palavreado dele. E nos elogia tanto que chego a ter “pena de nós”. Não imagina que nós, “esse pessoal que estuda”, não temos um “mirréis” da sua coragem diária. Nós, sociedade letrada, somos vaidosos, egoístas e solidários… apenas quando somos atingidos pelas pandemias. E a nossa Escola? Ah, ela tem falhado em mudar a sociedade.
Decidi contar ao mestre Santiago que nós, “esse pessoal formado”, não somos bem quem “o imperador do Japão referenciaria”. Quando falhamos, nem sempre temos a humildade de reconhecer, refazer, recomeçar, … !
Corri manhã seguinte ao seu encalço. Mas … vejam só, bem ali, acolá…! Uma multidão, agitada feito pinguins ansiosos, aguardava esperançosa seu barco que teimava em não chegar. Quis chorar a perda do mestre Santiago, mas o nó na garganta deu antes um arrocho no peito e aí, senti um não sei o quê que chorava por dentro.
Prometi-lhe, então, algo digno: contar aos meus alunos a sua saga no mar, sol cegante, feridas nas mãos, na luta diária contra Marlim.
Prometi-me dizer à sociedade, sempre que possível: uma “Escola que é reflexo da sociedade não serve a ela,… nem pra ela”.
“Por quem os livros dobram”! Onde se encontra a verdadeira sabedoria. Certamente não é nos discursos intermináveis sobre conhecimento, nem nas fórmulas que nos cercam. A essência da vida ‘se dobra’ para quem trabalha, para quem luta, para quem carrega o peso de um dia de trabalho com a dignidade de quem vive do suor do seu rosto, de quem jamais desiste de uma luta, seja ela no mar ou no campo.
O pescador, o ambulante sol a pino, o homem simples que recolhe o lixo que deixamos, têm os “livros dobrados” em suas vidas. A vida de qualquer pessoa deveria afetar a todos, como se todos estivessem ligados uns aos outros.
Quem sabe, um dia, a sociedade perceberá que esses homens simples, com seus rostos marcados pelo tempo e pelas lutas diárias, são verdadeiros heróis da nossa história. E quando isso acontecer, talvez os livros, finalmente, se dobrem para os verdadeiros mestres da vida.
“Nenhum homem é uma ilha, inteiro em si mesmo; todo homem é uma peça do continente, uma parte do todo… Portanto, nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”(John Donne)
*Mauro Oliveira,
Professor do IFCE e mestre em Informatica por Sorbonne University.
Respostas de 2
Que texto espetacular, caro professor Mauro.
Aliás, como sempre.
Ouso repetir e sugerir que seja transformado em adesivo para ser distribuído.
A vida de qualquer pessoa deveria afetar a todos, como se todos estivessem ligados uns aos outros.
Boa noite, Paulo
Grato pelo generoso comentário com jeito de carinho.
Grande abraço