Em artigo sobre o resgate da luta pela democracia, o juiz, professor e escritor Mantovanni Colares destaca a contribuição da consciência política nas letras de Chico Buarque. Confira:
As novas gerações precisam saber que “o povo na rua de blusa amarela” ocorreu nos anos de 1983 e 1984, numa gigantesca campanha popular na qual se lutava pelo direito ao voto direto para eleger nossos representantes. Sim, houve um tempo em que não se votava para presidente da República. O amarelo se tornou a cor-símbolo do movimento DIRETAS JÁ. A camisa amarela, vestimenta de quem prezava pela democracia. Daí a canção “Pelas Tabelas”, que inaugura o disco de 1984 (CHICO BUARQUE, conhecido como VAI PASSAR, álbum em seu aniversário de 40 anos neste 2024).
“Pelas Tabelas”, consta no Dicionário Houaiss, é um brasileirismo, ou seja, expressão própria do português do Brasil. “Cair pelas tabelas” significa não se aguentar mais de pé, sentir-se fraco, fatigado. Eis o sentido da canção: o contraste entre o voto indireto (prestes a cair, “pelas tabelas”) e o direto (a nascer). Jogar por tabela é fazer algo indiretamente, daí a ligação do voto indireto com o título da música. Lembrando que também se fala “jogar por tabela”, no linguajar do futebol, quando há troca de bola entre jogadores de maneira rápida e curta. Mais uma costura semântica com as palavras, pois Chico Buarque se vale do cenário de um estádio lotado, no sonho-delírio do eu lírico apavorado com a possibilidade de o povo assumir o poder. A cabeça dele andava “pelas tabelas”, em breve estaria “rolando no Maracanã” (construção de imagem do ditador com seu poder cortado, a cabeça…), numa figura maravilhosa da junção entre o popular (futebol) e o político.
Mais uma vez, como é de costume em suas letras, percebemos detalhes escondidos em labirintos ao longo da canção. A música faz referência indireta à conhecida passagem histórica da decapitação de São João Batista por Herodes, a pedido de Salomé, após seduzir a todos com sua dança e exigir a cabeça de João numa bandeja (baixela), episódio que revela o “mito da paixão mortífera”, do desejo mórbido de Salomé pelo Profeta Batista. O ditador, na canção, se sente o próprio profeta que antevê seu fim, com sua cabeça numa baixela…
Há enigmas na cantiga, só mesmo Chico Buarque a nos revelar (mas certamente não irá fazê-lo, isso é ótimo, pois deixa seu público livre para interpretar sua obra). “Oito horas e danço de blusa amarela” significa o quê? Para mim, a referência é ao horário de então do Jornal Nacional, da TV Globo, naquela época o noticiário mais visto no país, que iniciava pontualmente às oito horas da noite, por ali se via o que ocorreu durante o dia, inclusive o movimento das DIRETAS JÁ. Era um mundo sem internet ou redes sociais.
Outro mistério: quem seria “ela”, tantas vezes referida na canção? Penso ser a democracia, ou a eleição direta, basta substituir a palavra e faz todo o sentido. O ditador tem pesadelos por saber que ela (democracia ou eleição direta) está chegando, puxando um cordão, ou seja, a multidão em festa. Cordão é palavra própria do carnaval, um cortejo ou grupo carnavalesco. Câmara Cascudo resgata o termo ao lembrar que os cordões eram mascarados que formavam um grupo a dança no carnaval, vestidos de palhaços, índios, reis, rainhas, baianas etc.
Chico Buarque falou durante sua turnê mais recente (“Que tal um samba? – 2022/2023), que adora essa música, mas infelizmente não podia mais cantá-la, por conta do desvirtuamento da cor amarela, apropriada por setores do fanatismo da extrema-direita.
A blusa amarela é do povo, voltou a ser do povo. Neste 8 de janeiro, impossível não lembrar o marco de um ano do terrível “Dia da Infâmia”, no qual a democracia brasileira estremeceu, mas se manteve firme, graças a mulheres e homens comprometidos com nosso país; a verdadeira gente patriota, dentre elas a da categoria da qual sinto orgulho em fazer parte: a magistratura. O Poder Judiciário, juízas e juízes, notadamente do Supremo Tribunal Federal, decisivo na garantia do Estado Democrático de Direito.
Adoraríamos, Chico, vê-lo entoar novamente “Pelas Tabelas”; para que dancemos de blusa amarela, puxando um cordão.
Mantovanni Colares é juiz, professor, escritor e ainda é considerado por muitos um “chicólatra” ou “chicólogo”