“Não é drama, muito menos tragédia. Está mais para farsa, cinismo, hipocrisia. São os homens de terno de Kafka, aqueles que te mandam voltar porque sempre falta um documento”, aponta a jornalista e escritora Tuty Osório
Confira:
Suzete Nocrato, cronista neste mesmo Blogdoeliomar escreve uma carta a uma criança da Faixa de Gaza, pede perdão pela morte, pela desumanização, pela aboninação. Os assassinos têm nome e endereço. Têm apoiadores, argumentos, defensores. Tal qual qualquer tipo de tortura, matar pessoas de fome é cruel e indefensável. Principalmente crianças. Não tem nem conversa sobre relatividade. São também crianças, as personagens do documentário do Youtube, que me chega sugerido, na Página Inicial. Também estão sendo assassinadas, moram nas ruas de Tóquio por suposta escolha. Têm braços e coxas marcadas pela automutilação. É dilacerante. Não por ser novidade. Exatamente por não ser mais novidade.
Quando o indígena Galdino foi queimado vivo por um grupo de jovens que se divertiam na madrugada de Brasília, no início dos anos 2000, Leila Perrone Moisés, jornalista, escritora, acadêmica, escreveu um artigo no qual dizia que parte de nós ateara, também, fogo àquele corpo que repousava sereno . Outra parte, havia ardido junto com o homem adormecido na porta de uma pensão da Via W3. Nunca esqueci essa imagem de Leila. E assim sinto sobre as crianças de Gaza. Do Japão. Sobre as nossas crianças, os nossos jovens, que diariamente se machucam e se manifestam em atos de protesto e súplica. Onde estão os nossos filhos, os filhos dos outros, onde estamos nós, perdidos deles, perdidos uns dos outros? Há abismo e silêncio, ou há esperança? Ou será que é tudo a mesmíssima saída, no final de um túnel impossível de percorrer?
Não é drama, muito menos tragédia. Está mais para farsa, cinismo, hipocrisia. São os homens de terno de Kafka, aqueles que te mandam voltar porque sempre falta um documento. Sendo que nem mesmo sabemos o motivo de estar ali. Por isso precisamos estar em outro lugar, não cair na armadilha que atrai para o beco, fora da possibilidade do soco. Melhor bater, apanhar, porém, sem fugir. Podendo colecionar, e confessar, um erro, um desespero, jamais uma covardia. Podendo de fato escolher e entregar aos nossos a escolha real e consciente. Se parecem perdidas as palavras, é porque escaparam de um coração em fúria. Sem fuga. Com arte. Sem manha. Com sorte.
Depois de semanas, o amigo Afonso apareceu num fim de tarde, alheio de onde estava, vestido em trapos, surpreendentemente lembrado de quem é. Ou de quem foi. Quem me avisou foi Guita, filha de Saturnino, que o encontrou numa porta de pensão do Aquiraz. Passava de carro, à procura de uma locação para um filme e o viu, incrédula. Como foi parar lá ainda não contou. Descansou, respirou, sorriu. O importante é que voltou para nós. Se voltou a si é com ele e com a sua vontade de voltar, para quem, mais que para onde. O lugar, afinal, é uma circunstância das possibilidades.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais