Com o tíutlo “A Noite dos Esquecidos – A Paixão Silenciosa de Cristo”, eis artigo de Walter Pinto Filho, promotor de justiça do Estado do Ceará. Uma boa reflexão.
Confira:
Às vésperas da Semana Santa, tempo em que se rememora a paixão e a dor do Cristo crucificado, é oportuno voltar os olhos a uma outra dor — menos falada, mas igualmente devastadora: a dor das mães de Belém.
A história da humanidade é marcada por silêncios ensurdecedores — sobretudo quando o divino se cala diante da dor dos inocentes. Um desses episódios, registrado em Mateus 2:16-18, narra o massacre de crianças ordenado por Herodes. É um acontecimento bíblico, mas de brutalidade chocante. Curiosamente, pouco abordado. Este artigo propõe uma pausa
nesse silêncio — e um olhar mais atento ao grito abafado daquelas vidas interrompidas.
A matança dos inocentes é uma das passagens mais sombrias dos Evangelhos. Nenhuma criança é poupada — exceto uma: Jesus, conduzido ao Egito por ordem divina. É impossível não perceber a violência dessa narrativa. E mais difícil ainda é conciliar, sob o olhar humano, a lógica de um Deus que intervém para proteger apenas um, enquanto tantos outros são deixados à própria sorte — ou à fúria de um déspota paranoico. A pergunta que ecoa, entre teólogos e literatos, é a mesma: por que apenas José foi avisado? Onde estavam os anjos das outras casas?
José Saramago, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, capta com precisão essa ferida teológica. Para o Cristo que ele constrói, esse não é um episódio longínquo: é uma agonia pessoal. Jesus adulto, consciente de sua missão e de sua escolha divina, retorna a Belém. Diante do local onde as crianças foram assassinadas, permanece em silêncio. Um silêncio pesado, insuportável, que carrega a culpa de um sobrevivente — alguém salvo por um privilégio celestial que jamais compreenderá. Ali, diz Saramago, é o lugar em que Jesus chora, não por compaixão, mas por uma angústia que o consome — a dor de ter sido salvo enquanto outros foram sacrificados.
A cena imaginada por Saramago nos conduz ao âmago do escândalo espiritual: o silêncio de Deus diante do sofrimento dos inocentes. Como escreveu Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto: “Nunca esquecerei aquele silêncio noturno que me roubou para sempre o gosto da vida. Nunca esquecerei aquele silêncio de Deus.” Essa frase, embora nascida de outro contexto histórico, cabe perfeitamente aqui — em Belém, naquele tempo, onde os gritos das mães se perderam sem resposta.
Segundo Saramago, aquela seria a verdadeira paixão: não os pregos, mas a lembrança. A dor não da carne, mas da consciência. O sangue dos inocentes selou, antes da cruz, a marca de um Deus que escolhe — e cuja escolha, muitas vezes, fere mais do que salva.
É curioso observar como o texto bíblico trata o episódio com uma brevidade desconcertante. Para dar-lhe algum sentido, o evangelista recorre a uma antiga profecia de Jeremias — escrita séculos antes do massacre — e a toma como referência simbólica: “Ouviu-se uma voz em Ramá, choro e grande lamento; era Raquel chorando por seus filhos e recusando ser consolada, porque já não existem.” Uma tentativa de consolo poético diante de uma tragédia inconsolável.
A Noite dos Esquecidos é um desses pontos em que o mito e a dor real da humanidade se encontram. É quando a fé é posta à prova — não por negação, mas por perplexidade. A dúvida não é se Deus existe, mas que lógica Ele segue. Que justiça permite que uns sejam avisados e outros sacrificados?
A história de Belém deveria ser lembrada não apenas nos púlpitos, mas nos memoriais da dor humana. Aquelas crianças — sem nome, sem defesa, sem destino — fazem parte do Evangelho, embora muitos prefiram esquecê-las. Não houve glória, nem ressurreição para elas. Houve apenas o silêncio. Um silêncio que ainda grita. E uma noite que, para muitos, jamais se dissipou.
*Walter Pinto Filho
Promotor de justiça do Estado do Ceará.
Respostas de 7
O artigo do nobre amigo Walter Filho, como sempre nos remete à profundas reflexões, provocando-nos uma intensa e proveitosa discussão. Tenho plena certeza de que o autor, como grande promotor de justiça que o é, busca em suas palavras pela dignidade de todos os citados, mormente aos inocentes massacrados, que, sem dúvidas, pagaram caro pela dádiva de terem sido contemporâneos de Jesus. No entanto, vê-se claramente, existe uma profunda revolta com Deus, quando culpa-O do privilégio dado à José, sendo somente ele o abençoado à receber o aviso do anjo. Será que Ele, Deus, não sussurrou também em outros ouvidos, estando os mesmos, surdos à Sua voz? Deus nos fala a todo instante, nos mostra sempre o melhor caminho, entretanto, jamais nos tirará a liberdade dada pela escolha de escuta-Lo ou não. Fica, então, a pergunta: estamos nós, ainda nos dias atuais, com ouvidos atentos aos anúncios de Deus? Estamos nós, pecadores que somos, abertos aos alertas que Deus pode nos fazer, desviando-nos dos males e perigos? Pois é, o que Ele jamais fará, com toda certeza, é nos obrigar a ter fé.
Caro Eliezer,
Compreendo a intenção conciliadora do seu comentário, mas é preciso ser honesto: deslocar a tragédia da matança dos inocentes para uma suposta “falha dos pais” em escutar Deus é, no mínimo, cruel. É sugerir que centenas de famílias — esmagadas pela força brutal de Herodes — foram surdas, desatentas ou indignas da revelação divina. Isso não apenas fere a lógica, mas afronta a dignidade da dor humana.
Segundo os Evangelhos, apenas José foi avisado. Nenhum outro pai ou mãe. E mesmo que fossem, que chance teriam diante da violência estatal de um tirano disposto a exterminar bebês por precaução paranoica? Esperar que camponeses perseguidos, sem qualquer estrutura de fuga, conseguissem reagir a tempo porque “Deus teria falado e eles não ouviram” é quase imputar culpa às vítimas.
Não creio nos Evangelhos como narrativa histórica infalível. Mas mesmo se aceitarmos o relato, o que ele nos mostra é a imagem de um Deus que salva um e silencia diante de todos os outros. Isso não é revolta — é constatação. E diante disso, não cabe justificar a tragédia apelando ao livre-arbítrio ou a metáforas confortáveis.
O que o artigo faz é tirar do esquecimento essas vozes apagadas. E lembrar que nenhuma fé, por mais sólida que seja, deve ignorar a dor dos inocentes em nome de explicações piedosas.
Em defesa do artigo “A Noite dos Esquecidos – A Paixão Silenciosa de Cristo” de Walter Pinto Filho, é importante destacar que o texto não expressa revolta contra Deus, mas sim uma crítica à estrutura histórica que perpetua a injustiça e o sofrimento dos inocentes. A fé autêntica não deve ser usada como desculpa para a omissão diante da dor alheia. O livre-arbítrio não é licença para a indiferença. A fé que não se traduz em ação é contemplação vazia. Portanto, a mensagem central do artigo é um convite à ação e à solidariedade, reafirmando que a verdadeira espiritualidade se manifesta na transformação social e no compromisso com os que padecem. Att Leonardo de Castro.
Em defesa do artigo “A Noite dos Esquecidos – A Paixão Silenciosa de Cristo” de Walter Pinto Filho, é importante destacar que o texto não expressa revolta contra Deus, mas sim uma crítica à estrutura histórica que perpetua a injustiça e o sofrimento dos inocentes. A fé autêntica não deve ser usada como desculpa para a omissão diante da dor alheia. O livre-arbítrio não é licença para a indiferença. A fé que não se traduz em ação é contemplação vazia. Portanto, a mensagem central do artigo é um convite à ação e à solidariedade, reafirmando que a verdadeira espiritualidade se manifesta na transformação social e no compromisso com os que padecem.”
Caro Leonardo de Castro
Agradeço sinceramente sua mensagem.
As críticas feitas ao meu artigo não enfrentam seu conteúdo — preferem desqualificar autores citados e condenar a inquietação como se fosse heresia. Mas não escrevi para repetir verdades confortáveis, e sim para provocar reflexão. Não acusei Deus — apenas recusei o silêncio diante da dor dos inocentes.
O próprio Cristo, pendurado na Cruz, perguntou ao Pai por que o havia abandonado. Isso não o tornou menos divino — apenas mais humano.
Talvez o segredo da resposta esteja justamente aí: no abismo entre a fé que consola e a que ousa perguntar. E é nesse abismo que permanecem as vozes esquecidas de Belém — gritando ainda hoje, por aqueles que se recusam a esquecê-las. E estes eu continuo fiel.
Abraços
O artigo de Walter Pinto Filho é uma reflexão profunda e necessária sobre o silêncio diante da dor dos inocentes. Com lucidez e coragem, ele enfrenta um tema desconfortável que muitos preferem ignorar. Sem recorrer à retórica fácil da negação ou da fé cega, o texto abre espaço para o pensamento crítico, sem jamais desrespeitar a crença alheia. É um chamado à consciência — e, acima de tudo, à memória dos que foram esquecidos pela história e, muitas vezes, também pela teologia.”
Caro Francisco Paulo Marques
Grato pelas palavras que tocam o essencial. O amor que abandona os massacrados não é amor — é cálculo disfarçado de virtude. E nisso reside uma das grandes tragédias humanas: a indiferença vestida de compaixão.