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“Baseado na fumaça do bom direito”

Luciano Cléver é jornalista

“Segundo a lei, o que é droga? Há vácuo conceitual. Temos que nos remeter ao que diz a Anvisa, o que já denota imprecisão para julgamentos. Para o STF, droga é maconha”, aponta o jornalista Luciano Cléver. Confira:

Com a liberação do porte da maconha, o STF deu mais um passo fora das veredas constitucionais. Tende a se embrenhar num matagal que, para ser resgatado, será preciso mais que sinais de fumaça. A boa fumaça do direito.

Desenhado pela Constituição para servir de muro de contenção aos arroubos legislativos que poderiam desvirtuar os princípios do principal arcabouço jurídico, a corte, ela própria, tem feito a Constituição sangrar ao sair do seu quadrado e usurpar prerrogativas dos demais poderes, com um “ativismo deletério”.

Virou tribunal de todas as causas, quando deveria se restringir às questões constitucionais. Pela boca de seus membros, já se declarou poder moderador, já se disse editor de uma nação, já se indicaram como censores, dão pitaco como se comentaristas políticos e do cotidiano. Mesmo instado a funcionar como o VAR, como tapetão, a mudar resultados conquistados no justo jogo das quatro linhas, o tribunal deveria declinar quando não fosse de sua alçada.

Num caso específico sobre prisão por porte de drogas, resolveu dar repercussão geral. Cabia-lhe apenas julgar se seria constitucional um dos dispositivos da Lei de Drogas, mas foi além, como se tivesse que dar vazão a uma crise de abstinência legiferante. Querem, ao mesmo tempo, ser juiz e legislador, sem mandato popular.

Segundo a lei, o que é droga? Há vácuo conceitual. Temos que nos remeter ao que diz a Anvisa, o que já denota imprecisão para julgamentos. Para o STF, droga é maconha. Pois só a ela se referiu na sua decisão. E os outros narcóticos? Teve magistrado, como Toffoli, que defendeu a liberação geral.

Mesmo quando fitou apenas o serpentear da fumaça do baseado, para não tropeçar nas pedras de crack ou voltar ao pó, a corte resolveu ditar a quantidade (40 gramas) para diferenciar o traficante do usuário. Isso tudo era para ser definido em outra esfera, na legislativa.

Diante da distorção da realidade, que a marijuana pode provocar, uma voz sóbria se alteou, a de um dos poucos juízes que compõem o panteão dos iluminados togados. Fiat lux. Faça-se ouvir Fux sobre o protagonismo deletério que corrói a credibilidade do STF “quando decidem questões permeadas por desacordos morais que deveriam ser decididas na arena política. É lá que tem que ser decidido, é lá que se tem que pagar o preço social”.

O STF já atropelou a Constituição em três decisões históricas, que, pendentes de emendas para se alinhar às suas sentenças, tornam contraditório o documento maior a nortear as leis nacionais. O casamento homoafetivo, quando a Lei deixa claro o conceito de família, que merece a proteção do Estado: “formado por homem e mulher”.

Também inovou ao equiparar supostos crimes de homofobia aos crimes de racismo. E quando legislou sobre aborto de anencéfalos.

Os magistrados, que já se disseram iluminados e progressistas, em contraponto a um congresso (ou presidência da República) tosco, reacionário e conservador, alegam que agem por causa da omissão do Congresso sobre temas complexos. Os doutos ignoram que o não legislar sobre esses temas já é legislar.

Não cabe ao STF cobrar leis e ditar normas ao Congresso, da mesma forma que não cabe ao Legislativo ditar sentenças, promover julgamentos. Cada um no seu quadrado, no velho desenho de Montesquieu sobre a harmonia e interdependência entre os poderes, um servindo ao outro de freios e contrapesos para o equilíbrio do ambiente democrático. Não se deve quebrar esse dogma, nem mesmo quando se age sob o impulso ou a justificativa de defender a democracia.

Quando a fumaça baixar, quando a lombra for cortada, quando o efeito de todas as drogas cessar, incluindo a mais poderosa delas – a vaidade –, é preciso voltar à sobriedade de Fux, cuja frase deveria ser insculpida no pórtico da corte e na porta de cada um dos gabinetes togados: “Num estado democrático a instância maior é o parlamento.”

Diante de um STF, que é tido como aliado, da campanha e da governabilidade do atual chefe do Executivo, temos a conclusão de que, se não teve a picanha, restou a maconha. O STF fez o L. De larica.

Luciano Cléver é jornalista, compositor

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Respostas de 4

  1. Parabéns pelo excelente artigo que já começa com um título por demais criativo e que contém a ironia que só os talentosos sabem usar como expressão maior na arte da escrita.

  2. “Baseado na fumaça do bom direito” é um artigo que, pelo título, já mostra a criatividade e excelência do jornalista.

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