O músico Tarcísio Brito, de 27 anos, realizou, com apoio da Defensoria Pública do Ceará, um sonho no último dia 23. Após ter diversos pedidos negados pela Unimed para ser submetido a uma mastectomia (retirada total das mamas), ele garantiu esse direito na Justiça e fez, enfim, a cirurgia em um hospital de Fortaleza. A luta de Tarcísio vinha desde 2022.
Tarcísio, segundo a assessoria de imprensa da DPCE, reivindicava o procedimento por considerá-lo fundamental à formação da própria identidade. Ele é um homem trans. A Unimed, porém, argumentou tratar-se de uma intervenção estética, contrariando, assim, diretrizes de organismos nacionais e internacionais de saúde, além de laudos de médicos do próprio plano, cujos pareceres todos indicavam a necessidade da realização da cirurgia.
“Sem a Defensoria Pública e a minha vontade de vencer, nada disso teria acontecido. É uma vitória que não é só minha e sim de toda a comunidade trans. Fiquei receoso quando a Unimed finalmente autorizou, porque eu vinha de sucessivos traumas dos pedidos negados. Estou me recuperando em casa e o desafio agora é o pós-operatório, que vai demandar cuidados por, pelo menos, mais dois meses e já está tendo um custo financeiro importante”, revela.
Danos morais
Para amortizar o impacto na renda familiar, ele aguarda a liberação da indenização a qual tem direito pelos danos morais e psicológicos causados em decorrência das diversas negativas que recebeu do plano de saúde até conseguir, pela justiça, fazer a mastectomia. A Unimed já fez o depósito do valor, que será acessado por Tarcísio tão logo a Justiça autorize.
O jovem explica o porquê de o dinheiro ser tão necessário nesta fase do procedimento: “eu estou com um dreno na região da cirurgia e, quando tirar, vou precisar usar coletes especiais até o fim de julho para proteger os pontos e a área da cirurgia em si. Estou tomando antibióticos e analgésicos, mas a alimentação também muda e, em breve, vou ter gastos com fisioterapia, que tudo indica que não vai ser pelo plano. É todo um processo até ter vida normal. E tudo gera custos. A indenização seria para isso.”
A Defensoria tem atuado para acelerar a liberação do valor. Enquanto isso, Tarcísio tem contado com a ajuda de familiares e amigos mais próximos. “Como não sabemos o porquê dessa demora na liberação da indenização nem quando essa espera deve acabar, eu fiz uma rifa e algumas pessoas se solidarizaram. Com o que arrecadei, cobri um terço das contas: comprei um dos três coletes que preciso usar, e só aí foram R$ 240, além de parte dos remédios. Agora é esperar a juíza liberar o dinheiro”, pontua.
Já Tarcísio sonha com um futuro próximo. Com o dia no qual vai entrar no mar. Renascer nas águas. “A primeira coisa que eu perguntei pra médica foi quando eu poderia ir pra praia. Quero muito tomar um banho e sentir o mar batendo no meu peito. É uma conquista, sabe? Uma liberdade. Na hora da cirurgia, eu tava nervoso. Mas deu tudo certo. E hoje, mastectomizado, eu posso dizer que eu sou eu 100%. Quero desbravar o mundo”, sentencia.
STJ
Procedimentos como o que Tarcísio fez são considerados “cirurgias de redesignação sexual”. E, por entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), também devem ser feitos por planos particulares. Essas intervenções são realizadas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2010.
“Mesmo com laudos comprovando a necessidade da cirurgia, os planos negavam a realização sob o argumento de que se tratava de procedimento estético. Isso é um flagrante caso de violação de um direito humano fundamental: o direito à identidade. Não se trata de estética e sim de algo essencial à formação de um aspecto físico para a pessoa se enxergar naquele gênero”, explica a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Ceará (DPCE), Mariana Lobo, que atuou no caso de Tarcísio.
Para passar por um processo transexualizador, é preciso ser maior de 21 anos e ter tido acompanhamento clínico e hormonal por, pelo menos, 24 meses. No caso de mulheres trans, a cirurgia de transgenitalização não é ofertada pelo SUS em todos os estados. Atualmente, só oito Unidades da Federação dispõem do serviço. São elas: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Goiás, Rio Grande do Sul, Pará e Bahia. Ou seja: no Ceará e em outros 21 estados brasileiros e Distrito Federal, isso reduz o acesso ao procedimento aos planos de saúde particulares. Daí a importância da decisão do STJ.
“Não fazer a cirurgia é algo que afeta diretamente a sociabilidade de uma pessoa trans que deseja ser submetida ao procedimento. Porque ela se olha no espelho e não se enxerga naquele corpo. Então, se é importante pra ela fazer a operação para firmar a identidade de gênero dela, não é uma mera questão estética. É algo que influencia nas relações sociais e afetivas dela, na autoestima e até no risco de ela sofrer algum ataque na rua. Afinal, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo há 14 anos consecutivos”, finaliza Mariana Lobo.
SERVIÇO
*Núcleo de Direitos Humanos da DPCE – Avenida Senador Virgílio Távora, nº 2.184, no bairro Dionísio Torres, em Fortaleza.
*Mais informações- (85) 3194.5049