A realidade dos trabalhadores de aplicativos no Brasil, majoritariamente negras e negros jovens de periferias, reflete uma dinâmica que remonta à história do país, marcada e forjada, ao longo de séculos, na luta pela quebra das correntes da subordinação que hoje é digital e algoritmica. Como dizia Rosa Luxemburgo, “quem não se movimenta não sente a corrente que o prende”.
A resistência dos quilombos de Palmares, situados nas terras da Serra da Barriga, constitui um capítulo emblemático na história. Nestes redutos de liberdade e autonomia, mulheres e homens negros buscavam escapar da brutalidade da escravidão colonial. Nos recônditos da Serra, os quilombos eram e são símbolos vivos de uma resistência incansável.
Zumbi dos Palmares, líder incontestável, personificou a coragem e a estratégia que caracterizaram a resistência quilombola. Sua liderança tornou-se um farol para aqueles que, cansados da opressão, encontraram em Palmares não apenas um local de abrigo, mas um bastião de luta pela liberdade.
Ao lado dele, Dandara desempenhou um papel fundamental com sua força e liderança que desafiaram não apenas as forças coloniais, mas também as normas de gênero da época. Dandara não só lutou nos campos de batalha, mas também defendeu a igualdade de gênero naquele contexto. Infelizmente, a resistência não foi suficiente para manter a liberdade.
Gradualmente, os quilombos de Palmares sucumbiram às forças coloniais. Zumbi, capturado e morto em 1695, tornou-se um mártir, mas o legado de Palmares transcendeu e segue vivo até os dias de hoje. A Serra da Barriga, marcada pelos ecos da resistência, continua a contar a história de um povo que escolheu desafiar a injustiça, erguendo-se como testemunho da força da resistência do povo negro no Brasil.
Atualmente, em pleno século XXI, a luta por direitos e igualdade racial resiste e persiste manifestada no cenário das plataformas digitais em que os algoritmos dos sistemas de Inteligência Artificial, muitas vezes, replicam as estruturas do racismo estrutural.
Os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), neste semestre, revelam que uma parcela significativa da população brasileira está envolvida em trabalhos por meio de plataformas digitais de aplicativos.
O IBGE destaca que a população negra integra a maioria das trabalhadoras e trabalhadores nas plataformas de transporte de passageiros e entrega de mercadorias. Para os profissionais de transporte de passageiros, 60% são negros, comparados a 38,5% de brancos. No caso dos entregadores, a representação é de 59,2% de negros e 40% de brancos.
A realidade dos trabalhadores que circulam pelas artérias das metrópoles brasileiras evoca lembranças históricas, remontando à formação dos grandes centros urbanos no século XIX. Mulheres negras e homens negros que ajudaram a construir o Brasil constituem a base da identidade cultural do nosso país.
Para além do elo entre o passado, o presente e o futuro da população negra, desvelado e explicitado pelos dados estatísticos, há histórias, rostos e vidas. Por trás dos números há uma realidade gritante que aponta, de geração em geração, para a desigualdade salarial entre trabalhadores negros e brancos que desempenham o mesmo serviço.
A estatística indica que, mesmo atuando em um ambiente digital e tecnológico, as trablhadoras e os trabalhadores negros recebem remuneração inferior, sem a contrapartida justa das riquezas por eles produzidas. Contrariar as estatísticas é um desafio para a população negra ao longo de toda a sua história.
O combate ao racismo no mercado de trabalho requer, portanto, uma abordagem histórica, cultural, social materializada pela implementação de medidas legislativas e políticas públicas que reafirmem as bandeiras dos direitos humanos e da igualdade na era digital. É neste contexto que o Governo do Presidente Lula sancionou a continuidade da Lei de Cotas, apontando para o Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado no dia 20 de novembro.
É preciso reconhecer conceitos como o de racismo algorítmico para combatê-lo e para atentar aos critérios de programação de sistemas de Inteligência Artificial voltados para recrutamento de profissionais das mais diversas áreas. É também necessário compreender o funcionamento de ferramentas de controle como as dos sistemas de reconhecimento facial que atingem a população negra para além das relações de trabalho e emprego.
A história do Brasil, marcada pela resistência do povo negro, continua a inspirar a necessidade de organização e luta por direitos para os trabalhadores de plataformas digitais. Essa luta, em analogia à resistência dos quilombos, representa o esforço coletivo para superar as barreiras do racismo e para construir uma sociedade mais justa e solidária.
A realidade dos trabalhadores em plataformas digitais, especialmente para a população negra, pobre e de periferias é uma preocupação compartilhada nos países do Mercosul em um contexto de intensificação do fenômeno das migrações e do processo de mudança demográfica na nossa região.
O Parlamento do Mercosul, por meio da sua Comissão de Trabalho e Políticas de Emprego, ao reconhecer a natureza transnacional do trabalho em plataformas digitais, construirá, por meio da participação cidadã e do intenso diálogo com os movimentos e atores sociais, um marco regulatório regional que harmonize e reconheça os direitos dos trabalhadores de aplicativos em todos os países do bloco.
Enquanto não reconhecermos os direitos dos trabalhadores de plataformas em aplicativos digitais e persistir o quadro de precarização de jovens, negras e negros das periferias do Brasil e do mundo, esse canto que devia ser um canto de alegria, soa apenas como um soluçar de dor.
Paulão é deputado federal pelo PT de Alagoas e presidente da Comissão de Trabalho, Políticas de Emprego, Seguridade Social e Economia Social do Parlamento do Mercosul