Nessa virada de ano, estive prestando atenção nos desejos dos amigos virtuais do reveillón. Os mais comuns, “Estamos prontos” e “Vem com tudo” contrastavam com os mais cautelosos que diziam “Venha suave”, “Seja Leve”… (eu acho que faço parte desse segundo time aí). Perdoem-me os videntes, mas acredito ser impossível prevermos o que acontecerá nos próximos trezentos e sessenta dias. Eu acredito que somos construção. Muitas das mudanças que sonhamos também passam pelas nossas mãos. Eu não me iludo muito. Em um ano, acontecem coisas boas e ruins. Momentos felizes e tristes fazem parte de nossas vidas.
Sei que existem sempre os anos “Das Grandes Perdas”, aqueles que ficam marcados pra sempre, os que não queríamos vivenciar. Meu ano passado, por exemplo, foi um desses. Os primeiros dias de 2024 foram marcados por incertezas. Minha mãe teve um AVC hemorrágico grave e ficou vegetativa há exatamente um ano, o inesquecível 5 de janeiro de 2024. Esses momentos são uma espécie de marco (mesmo que de forma ruim). Usamos para dar referência. Porém, eles passam…
Agora, um ano depois, me vejo aperreada com uma coisa tão aleatória que preciso partilhar aqui com vocês. Minha avó não passou pela vida como a maioria das pessoas. Ela sempre gostou de comprar coisas, mas optou de forma consciente a nunca desfrutá-las. O sofá era sempre coberto por um plástico grosso e ainda preso por elásticos. Acredite! A sala de jantar, tão bonita, de vidro, do mesmo jeito. Você nem sabia que era de vidro. Quem chegava na casa dela pra, sei lá, entregar um garrafão de água, perguntava se ela estava de mudança. Mamãe é um pouco mais liberta, eu acho. Ousou tirar os plásticos do sofá da sala e, olha só, com seis anos de uso, o tecido começa a ceder e a espuma, afrontosa que nunca deveria sair de seu lugar, já começa a querer se “amostrar”. Que ousadia é essa! Ora! Se eu tive de brincar com as bonecas que vovó me dava dentro do plástico, como mamãe tira o sofá da proteção?! Proteção! Fico pensando no que a gente protege, cobre, isola e não vive. E eu falo sobre pessoas também.
Mamãe descobriu muita coisa que a vovó tinha guardado apenas depois que ela morreu. Nos últimos dias de 2024, eu resolvi correr pra ver o que vovó manteve guardado e que nem eu nem minha irmã sabíamos. Achamos discos de vinil. Vários. Sem vitrola. Mas eles estavam lá, intactos, dentro do plástico, claro. Imagina, arranhar todos esses discos com uma agulha! Que absurdo! Minha vovó ia de Tchaikovsky a Amelinha, passando por Rita Lee, Bethania e Roberto Carlos. Sem falar na coleção do violonista Dilermando Reis (prazer, Mirelle), artista que eu nem imaginava que estava no topo do seu ranking musical. Senti vergonha por achar que minha avó era uma mulher de uma música só (o Rancho Fundo, de Chitãozinho e Xororó).
Nossos objetos contam histórias e, quanto mais gastos, mais traços de bem vivência. Chegou um dia em que eu tive um estalo. Decidi abrir todas as caixas e ver exatamente tudo que minha mãe tem guardado até hoje. Resolvi usar todas as xícaras guardadas “para um dia”, pra receber “aquela visita” que nunca chega. Foi um privilégio poder fazer isso com ela ainda viva. Acredito que abrir caixas com um sentimento de luto deve ser mais doloroso ainda. Pretendo, a partir de agora, deixar o tempo fazer sua parte: rasgar sofás, estragar xícaras (sem bicar pedacinhos, talvez) e arranhar discos.
Se o seu ano passado foi o ano em que você saiu do emprego, separou-se, perdeu alguém que tanto amava, acredite, tudo passa. Inclusive nós também. Que façamos deste ano de 2025 um ano bem gastadinho, bem usado, bem vivido!
Um cheiro!
Respostas de 7
Mirelle, que texto lindo! E eu me identifiquei tanto! Minha tia(que me criou), quando teve agravamento do Alzheimer e foi morar comigo, me fez passar exatamente pelo mesmo: ver caixas e caixas de coisas guardadas para “um dia”: de Tuppaware que perdeu a força no plástico a louças, sapatos, roupas, toalhas e bolsas… Creio que o mundo era outro, onde comprar e adquirir bens não era tão fácil e, talvez por isso,a hipervalorização. De toda sorte, tudo aquilo me ensinou a usar tudo sempre, porque o melhor momento é agora. Aqui em casa é louça de cristal no café da tarde, jarra de porcelana italiana pra água da prece, tudo meu é usado e quando não é, é doado. Não tem servido pra mim há 6 meses ou 1 ano? Nada indica que me servirá mais. Que sirva a outra pessoa. Que seja bonito em mais alguém.
Sensacional este texto! Profundo e necessário! @janara.pinheiropsi
“Deixar o tempo fazer a sua parte” e sermos aliadas.do tempo, ou seja, viver!
Desejar um feliz 2025 é muito fácil, mas ao afirmar, pressupõe que irá fazer algo para novo com que se tem e com o que é em favor da boa convivência. 🫂
Obrigada pela reflexão! Um 2025 abençoado!
Mirelle, você sempre feliz com as palavras. Elas dançam em sua mente e se harmonizam no papel, nos trazendo a melodia ditada pelo coração.
Ao te ouvir, sim, te escuto enquanto te leio, meu desejo é que neste ano o coração seja um órgão mais gasto e farto pra mim. E pra você, desejo que a melodia que se arranja e vira escrita te encontre sempre , independente do gênero musical ou da situação, porque suas palavras são como chocolate quente no frio, dar um quentinho no coração e abraça a alma.
Análise perfeita minha amiga. É preciso viver e usar as coisas que temos. Afinal de contas, ter bens só faz sentido se deles desfrutamos.
O excesso de proteção e de cuidado nos impede de usufruir a vida.
Beijos.